Falar em zumbis é correr um risco bastante perceptível: denominá-los fenômeno e produto do mercado norte-americano de games e filmes, um simples produto da indústria cultural, é o caminho mais fácil (falo, claro, de manifestações artísticas, no sentido mais amplo possível, deixando de fora questões religiosas, que pelo que parece são as origens de fato do mito zumbi). Games como Resident Evil e o mais recente Left 4 Dead e filmes aos montes retratam os zumbis como se conhece: mortos-vivos com buracos na face, babando alguma coisa nojenta, malucos para comer um pedaço de carne humana a qualquer custo.
Por outro lado, a coisa mais parecida com zumbis que se produziu na literatura brasileira do século XX, salvo engano, foi a revolta dos mortos no monumental Incidente em Antares, do gaúcho Érico Veríssimo. Em Antares, os mortos insepultos, porém, não são burros e sedentos por carne humana, antes, fazem uma análise sociológica e política de sua época, provocam uma revolução por baixo dos panos, e o resto você confere lendo o livro por aí.
É também de um autor gaúcho a experiência com zumbis tema desta resenha: Antônio Xerxenesky (1984) escreveu e lançou Areia nos Dentes em 2008 pela Não Editora, uma editora independente que criou junto com cinco amigos e que hoje em dia já tem um catálogo respeitável. Relançado pela Rocco em 2010 (com um cuidado gráfico bastante apurado, capa e edição) com uma orelha elogiosa escrita pelo Daniel Galera, o livro também foi finalista do Prêmio Açorianos.
O próprio Galera lembra, na orelha desta edição, que a temática zumbi carrega nas costas uma legião de fãs de histórias que simplesmente deram certo: discutir esteticidade nesse campo pode não ser uma boa ideia, porque além de correr o risco de contrariar muita gente, a discussão pode ser simplesmente deixada de lado. Não há dúvidas, histórias com zumbis tendem a dar certo.
Mas falando em literatura com ambição estética séria, o público é diferente daquele que usualmente curte zumbis (os gostos, é claro, não são excludentes nesse caso, mas...). Portanto, é no mínimo ousado que um escritor com pretensão artística escreva sobre... zumbis. Mas, e esse é o ponto alto, Xerxenesky não escreve sobre zumbis: ele os utiliza como uma estetização de um sentimento profundo e muito humano, relacionado à morte, que em muitos outros livros está retratado de maneiras diferentes.
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Trecho:
“Ela caminhou para longe da sombra. O relógio bateu três horas da tarde. Os cabelos dela reluziam na claridade do dia, e qualquer traço de idade desapareceu, como se ela tivesse sido congelada aos dezesseis anos. Ela piscou e o mundo de Thornton chegou ao fim, para sempre devastado pela imagem de Maria contra o sol, irradiando”.
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Antônio Xerxenesky (Foto: André Hilgert) |
O fato é que os zumbis compõem uma parte bastante superficial de Areia nos Dentes (mas é tamanho o fascínio e a desconfiança que eles a princípio exercem que se considerou importante esclarecer), assim como o faroeste que lhe dá nome e boa parte do conteúdo: outra ousadia do autor, que aqui pode também ser interpretada como uma pirotecnia arriscada, foi montar personagens mexicanos, numa história que se passa no México.
Agora é necessária uma explicação: o grande destaque do livro (que inclusive valida todas as pirotecnias temáticas) é a sua estrutura. As perguntas “quem narra” e “por que narra”, geralmente bastante necessárias hoje em dia, estão o tempo todo rondando a obra, e as soluções que o escritor busca raramente deixam a desejar. O que se percebe durante a leitura de Areia nos Dentes é a proposta estética e o domínio de um estilo bastante evidentes.
Quanto aos personagens mexicanos, nada de errado, mas a probabilidade de que eles tenham um tratamento mais superficial é maior quando se escreve sobre um ambiente, digamos, longínquo. É claro que não se podia escrever um faroeste no Brasil, mas o ponto é que aquele que, no livro, narra o faroeste, e que está nos dias atuais, também é mexicano. Se o narrador fosse porto-alegrense, como o autor, ele certamente seria mais complexo.
Outro porém presente no texto é o uso de frases exageradas, que batem de frente com a leveza com que o livro é narrado. Para citar um exemplo, lá na página 37 o narrador diz: “A força da regurgitação inundou os olhos de Juan com aquela água salgada que convém chamar de lágrimas...”. Um editor mais cuidadoso daria conta de uma frase como essa e evitaria o tropeço no texto.
Mas, citando Daniel Galera: “Eis tudo que você precisa saber sobre Areia nos dentes: tem zumbis no meio”.
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“Os mortos não ficam onde estão enterrados”. A frase de John Berger serve como epígrafe de um romance de Edney Silvestre, mas também serve a Areia nos Dentes, como um mantra quase inaudível, mas que no fundo, sob as camadas da narrativa estrutural bem sucedida de Xerxenesky, se faz ouvir, muito claramente.
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Areia nos dentes
Antônio Xerxenesky
144 páginas
Preço sugerido: R$24,00
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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Se um de nós dois morrer
Paulo Roberto Pires
124 páginas
Preço sugerido: R$36,90
A estrutura narrativa também é neste livro um fator relevante na estética do autor, que, segundo o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, "tão vila-matasiana quanto – ou talvez mais do que – a obra do próprio Vila-Matas".
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