quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Enquanto água, Altair Martins


No mais recente Paiol Literário, aqui em Curitiba, Altair Martins (1975) disse: “O narrador em terceira é perigosíssimo hoje. Porque é a pretensa verdade. É aquele narrador que pára e diz: “Fulano nascera…”. Não dá mais. Ninguém mais acredita nesse narrador que quer te convencer: “Eu tenho uma bagagem histórica sobre o personagem e agora vou mostrá-la”.”

Martins, que é doutorando em Letras pela UFRGS, já tem publicado quatro livros (A parede no escuro, romance de 2009, foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria autor estreante). O mais recente, a coletânea de contos Enquanto água (Record, 2011), é a reafirmação da frase do primeiro parágrafo. Em uma sucessão de contos, na maioria breves, Martins constrói uma obra cujo narrador está em constante crise: isso sem deixar de lado um grande talento para simplesmente contar uma história.

Os 18 contos — alguns deles já publicados em revistas ou outras antologias  são divididos em quatro partes: “Chuva na cara”, “Depois da chuva”, “Garoa” e “Água com gás”, e as histórias encontram uma convergência dentro de cada divisão. Os contos da primeira parte são, quase todos, brilhantes. Em “dois afogados”, o narrador utiliza recursos ousados (como placas de trânsito e uma alternância de vozes) para criar uma história que vai muito além da própria narrativa. Lembrei, lendo, de uma passagem de um livro de Luiz Felipe Leprevost que se encaixa magicamente aqui: “Segui placas de contramão”.

“homens de verdade” insere o tema da homossexualidade no livro narrando a história de jovens (crianças) cruéis. Um dos recursos utilizados nesses contos é o final arrebatador: quase sempre na última linha. Isso é muito difícil de ser bem realizado, e lembra, por exemplo, Cortazar. 

Altair Martins
(Divulgação Record)
A segunda parte, com apenas um conto, simboliza uma ficção um pouco diferente. Se é comum vermos uma linhagem que utiliza a própria literatura como artifício (da qual sou fã, assim como Altair Martins, pelo que parece; cito Enrique Vila-Matas como exemplo), Martins utiliza o conhecimento teórico da área de humanas para produzir um Mal de Montano às avessas: o personagem parece enlouquecido pelo próprio excesso de conhecimento (aparecem teorias de Peirce, Langmuir, Lévi-Strauss, Lacan, Borges, e outros).

A terceira sessão, “garoa”, guarda eco exatamente de Borges: uma metafísica aplicada que pretende criar um mundo particular, com elementos que pedem uma segunda olhada, e que te faz dizer: “é isso mesmo?”. Por exemplo, no conto “quase oceano quase vômito”:

“Aquele rio não aceitaria assim tão fácil. Dominava um continente e um pátio no oceano. E quando amanheceu completamente água, e nu, como se nascendo, não houve quem não se espantasse. Era o primeiro dos tantos rios que, sem explicação, voltavam à limpidez original. Eram rios tão puros que os leitos podiam ser lidos”.

A quarta sessão, “Água com gás”, mostra todo o talento do escritor ao praticamente fazer um resumo do livro: histórias interessantes com estruturas bem pensadas e nunca tradicionais. No conto “o mar, no living” (título de um poema de Carlos Drummond de Andrade, que dá a seguinte epígrafe: “o mar tudo recobre / sem nada asfixiar”), o próprio mar, isto é, a água invade o ambiente de uma festa de aniversário infantil:

“E então, mal a vela se acende, o mar entra no living, atravessando os vidros e ocupando, com azul e fauna, os espaços da fest. E posto seja mar e se comunique com o oceano, ele surpreende em ser tudo menos violento, e não apaga vela ou palma. Apenas que a festa segue, percebida pelos sentidos abafados. É a luz de uma vela sob o mar. É um parabéns afogado. São raízes da fumaça dentro d’água”.

É exatamente a água o ponto chave desse livro (claro): a água, que às vezes aparece apenas como rio, mar ou chuva, mas muitas vezes como metáfora de sentimentos tão humanos como a esperança, a saudade, o arrependimento, a traição e, em última instância, a morte.

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Outro aspecto importante na obra de Martins, segundo o próprio, é o engajamento. 

[A literatura] deve mostrar que existe uma pretensão de realidade, muito falsa, produzida às vezes pela mídia. Existe um Brasil da televisão e existe o Brasil real. Então, a função da literatura é esta: de alguma maneira corroer a verdade que pretende ser verdadeira. Por isso o engajamento. O escritor não pode deixar de mostrar que essa realidade é falsa e mostrar uma outra realidade possível — que, ao meu ver, só a literatura vai mostrar.

Quando uma mulher enfrenta dificuldades com o marido alcoólatra e tenta fugir com o pastor da igreja; quando um homem muito religioso, esmagado por uma culpa muito grande, se vê incumbido de cuidar de duas filhas e percebe que não é capaz; quando uma mera brincadeira doméstica vira tragédia. Pequenos exemplos do engajamento de Martins: sempre recoberto por uma camada de excelente prosa ficcional, percebe-se um texto preocupado com o lugar que a própria literatura pode ocupar em uma sociedade de não-leitores.

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Trecho do conto “unha e carne”, que narra a relação de Irene (mãe), Luciana (filha) e Jorge (padrasto):

“Luciana pediu café. Antes que Irene se rendesse e lhe pedisse para não acreditar nas coisas que ouvia, a filha arranjou modos de olhar o relógio, inquietar os cabelos, atirar os olhos aos cantos e dizer que tinha de ir, senão chegaria atrasada ao trabalho. Irene, ao portão, sentia então que mais coisas ficariam à espera da água. A filha ainda disse Não precisa ir se não quiser. Mas Irene sabia, desde que Luciana fora morar sozinha, que aquilo tudo entre a filha e Jorge era como a louça. Não precisava lavar se não quisesse.”

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Enquanto água
Altair Martins
160 páginas
Preço sugerido: R$27,90

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No vídeo abaixo, Reginaldo Pujol Filho e Altair Martins fazem uma divertida leitura do conto "Quero ser Altair Martins", do livro Quero ser Reginaldo Pujol Filho, já resenhado por aqui.



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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Suicídios exemplares
Enrique Vila-Matas
Tradução: Carla Branco
Cosac Naify (2011)
208 páginas
Preço sugerido: R$49,00

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A máquina de madeira, Miguel Sanches Neto


O Brasil existe? Essa parece ser a pergunta que ocupa A máquina de madeira (Companhia das Letras, 2012), romance mais recente de Miguel Sanches Neto (1965). Como o próprio diz, esse é um romance de um país antigo e atual. É verdade.

A classificação de romance histórico é inevitável: o livro conta a história de Francisco João de Azevedo (1814-1880), padre e inventor brasileiro que teria desenvolvido a primeira máquina de escrever do mundo (pelo menos, capaz de ser produzida em escala industrial). Francisco existiu de fato, assim como sua invenção e como boa parte da história desse livro. Isso é importante na medida em que reconhecemos o extenso trabalho de pesquisa do autor; desimportante se alguém quiser considerar onde começa e onde termina a ficção. Porque A máquina de madeira é um romance histórico, ambientado especialmente no Rio de Janeiro (mas também no nordeste), que conta a história de um brasileiro empreendedor habitante de um país, ele sim, de madeira.

Porque é a essa conclusão que se chega durante a leitura do romance: a máquina de madeira é o próprio Brasil. O século XIX brasileiro é no mínimo conturbado, e talvez toda a movimentação política interna do século tenha fechado os olhos do país (ou de seus dirigentes mais importantes) para a questão do progresso material (sempre duvidosa, mas, naquela altura, obviamente necessária). 

“Não há indústria mais necessária para o país, pensava dom Pedro, do que a de beneficiamento de madeira. Nossas madeiras, tanto pela variedade quanto pela qualidade, se sobrepõem às de outros países. Se nosso próprio nome vem de uma madeira, são as árvores o que melhor nos representam”.

Não houve uma política marcante de desenvolvimento econômico sólido. Antes, a importação em massa de (falo com base no romance) ferro. Porque, aparentemente, era isso que era necessário para o país crescer (ser um país de verdade): ferro. Poderíamos resumir assim: o romance trata da história do padre Francisco buscando alguém que possa fundir a sua máquina de madeira. Ou: o romance trata de uma metonímia da história do Brasil buscando ferro em outros lugares para fundamentar a sua própria unidade como país. Ambas as descrições estariam corretas.

Miguel Sanches Neto
(Divulgação Companhia das Letras)
O romance é dividido em duas partes maiores, “Londres” e “Nova York”; ambas fugas fracassadas para as duas cidades, que supostamente acompanhariam a mente avançada de um brasileiro com olhos para o futuro. O narrador parece ser sempre aquela terceira pessoa distante, do próprio séc. XIX. Isso muda quando Sanches Neto insere no romance variações estruturais (ao usar diferenças tipográficas, como o itálico, ou formatações de notícias de jornal, por exemplo) que criam a dinâmica na leitura.

O trabalho da própria linguagem também aparece: especialmente por sutis escolhas de vocabulário, um português não muito diferente, mas que remete ao séc. XIX, é usado para narrar a história (o autor falou sobre isso numa entrevista, clique aqui; ele disse que se apropriou da linguagem de diários e anotações pessoais da época para criar um idioma mais próximo, mas não oficialiesco, alencariano).

Em outra interpretação da história, também podemos ressaltar o papel secundário que a máquina ocupa, paradoxalmente. Depois de sua invenção, é urgente encontrar para ela alguma utilidade, algo que a justifique, que a exima da culpa de ter nascido para escrever num país não desenvolvido. Gravar sermões nas igrejas e depois as discussões na Assembleia Estadual de Pernambuco não foram suficientes para reverter o papel secundário da escrita na própria história do Brasil.

Talvez, agora percebemos, essa luta já seja ultrapassada. Talvez a necessidade seja, atualmente, reconhecer esse próprio caráter secundário da escritura, e com ele fazer alguma coisa. Trabalhamos.


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A máquina de madeira
Miguel Sanches Neto
248 páginas
Preço sugerido: R$36,00

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“Se temos madeira, também temos cupim, muito cupim, com uma voracidade que só os insetos tropicais sabem ter, e também com uma assustadora capacidade de reprodução. [...]Nos trópicos, tudo estragava muito mais rápido. Tudo envelhecia de maneira muito mais veloz. Ele mesmo, que não tinha ainda quarenta anos, já se sentia um ancião. Nem se fôssemos feitos de ferro suportaríamos a vida aqui, e no entanto somos feitos de madeira”.


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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Viva o povo brasileiro
João Ubaldo Ribeiro
640 páginas
Preço sugerido: R$69,90

Obrigatório.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

E se contorce igual a um dragãozinho ferido, Luiz Felipe Leprevost

Como foi dito por aqui há algum tempo, achar o equilíbrio numa narrativa ao misturá-la com poesia pode ser um processo arriscado: cair na pieguice e usar imagens desnecessárias é um risco constante, e saber se esse risco é necessário também é outra questão. Porém, quando o escritor consegue juntar seu talento poético e metafórico numa narrativa prosaica, o resultado é sempre recompensador. Essa proposta foi bem cumprida pelo escritor curitibano Luiz Felipe Leprevost no seu livro mais recente, E se contorce igual a um dragãozinho ferido (Ed. Arte e Letra, 2011).

Leprevost tem trânsito: em Curitiba e no Rio de Janeiro, ele compôs uma obra artística que extrapola os limites da literatura (são pelo menos três livros de contos, um de poesia, e uma novela), alcança a dramaturgia e, especialmente, a música. A ponto de ele chegar a declarar em redes sociais que “não sabe mais o que é literatura”. A parte a brincadeira, de fato nos últimos meses ele se dedicou bastante à sua carreira musical, da qual já saíram músicas muito bonitas.

Esse talento poético para a composição inevitavelmente seria refletido na sua escritura: E se contorce... encontra paralelo temático, por exemplo, na seguinte canção (que nasceu de um poema seu; é ele quem canta a versão abaixo):



Segundo o próprio afirmou na última edição do Festival Nacional do Conto, ele primeiro encontrou em si mesmo uma voz poética, para em seguida encontrar a narrativa dentro da própria poesia. Isso explica o frequente uso de imagens metafóricas, característica desse livro (e de toda a prosa do autor), narrado pelo próprio personagem, em duas estruturas: uma delas em Curitiba, supostamente no presente, a outra no Rio, “cinco anos” atrás.

Um dia, quando vi, meus braços tinham sido transformados em tentáculos de polvo, querendo abraçar sua ausência. Lembrei por tanto tempo a pele e a bocarra dela como as de um crocodilo que ficava ao meu lado um pouco e sumia. Minhas mãos em pinças, patolas de caranguejo, não a impediam de partir.
    Nossa ternura era feita de garras, não de dedos. De chicotes, não línguas. Camisas de força, não abraços. Chave e fechadura.
    Mas deixa eu contar do começo.
Luiz Felipe Leprevost
Foto: Marco Novack
Descobrir quem é esse personagem talvez seja uma investigação interessante. O suposto publicitário curitibano vai tentar a sorte no Rio de Janeiro, no mundo empresarial da propaganda, e acaba vivendo uma vida provisória em quartos alugados, poucos amigos e, claro, o fio condutor da história, um amor.

Mas o que descobrimos ao ler essa narrativa é que o narrador é, na verdade, um poeta frustrado. Ele diz algumas vezes que escreve uns poemas, mas o maior poema que ele escreve é na verdade aquele que estamos lendo. E isso é tudo.

“Ela me perturbava. Eu que tinha colecionado medalhas de atleta e amores doídos ao longo da vida, que no passado aparei os cabelos da chuva, queria agora protagonizar o filme de açúcar cristalizado que em sua mente trepidava.”

Sobre a história (e não se preocupe, você descobre isso logo no início), o amor é na verdade um desamor, um não-amor, um processo lento e extremamente doloroso de um amor acabando (“ternura feita de garras, não de dedos”). O amor acaba em todos os lugares, como disse Paulo Mendes Campos, e esse livro aqui é um tratado sobre o finalmente do amor. A distância entre o Rio de Janeiro e Curitiba (simbolicamente, a distância entre o casal de personagens) também é importante aqui: transformá-la em apenas uma linha de texto é o que tenta fazer (e consegue) o narrador.

E é esse personagem que passa pelo processo de desconstrução o grande trunfo do livro. Descobrir e entender por que isso acontece é a tarefa do leitor.

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E se contorce igual a um dragãozinho ferido
Luiz Felipe Leprevost
Arte e Letra (2011)
119 páginas
Preço sugerido: R$25,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Um erro emocional
Cristovão Tezza
Record (2010)
192 páginas
Preço sugerido: R$34,90

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O filho de mil homens, Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe (assim mesmo, com maiúsculas) levou o prêmio Portugal Telecom 2012 por a máquina de fazer espanhóis (Cosac Naify, 2011), merecidíssimo. O autor, angolano que vive em Portugal desde a infância, esteve no Brasil na FLIP 2011, fez tanto sucesso que acabou sendo o autor mais vendido daquela edição da Festa (justamente, o máquina..., que, naquela época, junto com o remorso de baltazar serapião, este publicado pela Editora 34, eram os seus únicos livros publicados por aqui).

Ele fez sucesso pela simpatia (hoje em dia, facilitador para qualquer artista), mas principalmente por um texto, uma carta. Se esse texto tiver sido uma jogada de marketing, foi, sem dúvida, a mais emocionante de todas. Mas acredito que não. Você mesmo pode decidir lendo a carta aqui, ou, principalmente, assistindo ao vídeo abaixo (são sete minutos, mas você não vai se arrepender, eu garanto):


Seu romance mais recente, O filho de mil homens (Cosac Naify, 2012), pega o gancho daquilo que Mãe falou ali no final, de que tem quarenta anos e não tem filhos. Os primeiros parágrafos dão conta do que eu preciso falar sobre a história:

“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo.
     Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.
     Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade no espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía.”

A partir daí, Valter Hugo Mãe escreve um romance emocionante que, à semelhança das telenovelas brasileiras, se divide em histórias de personagens diferentes aparentemente sem conexão. O que aparece diante do decorrer do livro é um narrador seguro, que costura diferentes narrativas com tranquilidade (esse é o seu quinto romance; ele já publicou mais de quinze livros de poesia, nenhum deles no Brasil, infelizmente, porque o seu pendor para a poesia é muito evidente nos romances; chega a ser quase constrangedor).

Foto: Vítor Quelhas
Quem utiliza essa poesia na narração é um narrador que parece ser uma memória coletiva, memória esta que se veste exatamente de poesia. A linguagem criada por Mãe, também bastante presente nos outros livros, cria, por sua vez, um mundo muito particular. Um meio do caminho entre passado e presente, um não-lugar no espaço. O ficcionista atinge seu objetivo máximo, ao que parece, quando consegue equilibrar todos esses fatores; não dá pra exigir mais nada.

Entre alguns temas que passam pelo romance, há dois que se destacam: (1) a questão do “ser completo” e (2) a homossexualidade.

1. Desde os primeiros parágrafos essa busca está presente: para Crisóstomo (e para Mãe também, isso é muito claro) é urgente buscar algo que lhe complete a vida. A presença da morte é também muito forte nos livros, o que faz, ainda mais, essa busca pela totalidade da vida ser urgente. Às vezes, ainda, para os personagens deste livro, não basta ser completo, ser inteiro: há que se ser o dobro.

2. O tratamento que os personagens do romance (não necessariamente os principais, mas especialmente os vizinhos, os conhecidos) dispensam ao personagem homossexual (o narrador o chama, inicialmente, de “o homem maricas”, e depois descobre-se o seu nome, Antonino; essa mudança faz parte do próprio processo de incorporação do personagem), esse tratamento dá algumas dicas de que o romance está mais no passado do que no presente (embora, infeliz e tragicamente, alguns viventes ainda tenham comportamentos semelhantes). Falo da forma agressiva e preconceituosa que os personagens tratam Antonino especialmente na primeira metade do livro, ao considerá-lo, em uma só palavra, uma aberração. Além disso, a relação da mãe, que é uma das personagens antiquadas, digamos, com o filho é, inicialmente pelo menos, kafkiana. Esse relacionamento parece, em algum nível, com o relacionamento da mãe com Gregor Samsa.

De qualquer forma, o tratamento que Valter Hugo Mãe dá a esse tema insere o romance, de uma vez por todas, no mundo contemporâneo (não vou entregar nada, mas esse tratamento passa longe de lugares comuns politicamente corretos, igualmente).

Pegando do início, sabemos que esse é um livro sobre família. Mas não se engane. Como diz Silviano Santiago na orelha do livro, não há nada de tradicional aqui. Não há nada de comum na obra de Valter Hugo Mãe.

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O filho de mil homens
Valter Hugo Mãe
256 páginas
Preço sugerido: R$39,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Está ficando tarde demais
Antonio Tabbucchi
Tradução: Ana Lúcia Ramos Belardinelli
Rocco (2004)
196 páginas
Preço sugerido: R$30,50

Tabbucchi é outro especialista em criação de não-lugares; esse belíssimo romance epistolar também pode ser considerado como um tratado sobre a saudade.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, David Foster Wallace

Desvincular a experiência pós-moderna da narrativa de David Foster Wallace (em algum estágio da sua obra, pelo menos) parece impossível. Ler alguns dos contos de Brief interviews with hideous men (lançado no Brasil pela Companhia das Letras; me refiro ao original neste texto porque só tive acesso a ele) é missão de especialista: Datum centurio por exemplo, é praticamente impenetrável.

Mas, após a leitura de um artigo do professor Caetano Galindo¹ (especialista na obra de DFW), podemos dizer que Brief interviews... é um momento de transição na obra do escritor americano. Uma transição da experiência puramente pós-moderna de “narratividade” (que redundou nas suas produções iniciais) e a fase final do trabalho de Wallace, que remete, segundo Galindo, a uma negação de um sistema irônico inerente à cultura norteamericana no final do século XX.

Esse sistema é para Wallace (de acordo com Galindo) uma postura ética que limita as possibilidades da escrita de ficção assim como as suas próprias contestações. Simplificando, é uma luta contra esse conformismo, contra essa aceitação passiva de fatores culturais que vai, enfim, “mover o futuro projeto ficcional de Wallace”.

No artigo, Galindo reúne e faz uma reflexão sobre as próprias reflexões de Wallace em um ensaio entitulado E unibus pluram, que por alguma razão ficou fora de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Companhia das Letras, 2012, trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari). Naquele ensaio, Wallace fala da influência da TV no imaginário cultural norteamericano, especialmente do fator irônico autoconsciente que a TV impõe, fator também exercitado pela ficção escrita. Segundo Galindo,

“E o que David Foster Wallace parece ter vontade de "reabilitar" é precisamente uma literatura triste, emocional, sincera em sua relação ficcional com o leitor. Evitando os cutucões do cotovelo do ironista e as artimanhas dos narradores indignos de confiança, especialmente dedicados a tentar passar a perna nesse leitor. Urn leitor que tem como principal finalidade se  juntar ao sorriso acre do autor que de tudo descrê e que apenas reafirma esse fato.”

(Ilustração Brian Taylor,
Los Angeles Times
)
Em Brief interviews... essa “vontade” se faz bem clara em alguns contos (apesar do contínuo interesse pela estrutura em si da narrativa, característica tipicamente pós-moderna): o fato de DFW investir pesado em descrições às vezes intermináveis, e em notas de rodapé enormes, parece ter o intuito de justamente aparar qualquer ponta de ironia que tenha escapado ao texto. No mínimo, aquela ironia autoconsciente, propositada. Um bom exemplo é o célebre “The depressed person”:

“The word ‘pathetic’, the therapist candidly shared, often felt to her like a defense-mechanism the depressed person used to protect herself against a listener’s possible negative judgements by making it clear that the depressed person was already judging herself far more severely than any listener could possibly have the heart to. The therapist was careful to point out that she was not judging or critiquing or rejecting the depressed person’s use of ‘pathetic’ but was merely trying to openly and honestly share the feelings which its use brought up for her in the context of their relantionship.”

Esse tipo de descrição de situações e sentimentos e trocas de experiências é marca fundamental da prosa de Wallace nesses dois livros em análise aqui. Na não-ficção, essa investigação parece levar alguma vantagem simplesmente pelo fato de ser, em alguma medida, mais engraçada, mais envolvente (sem nenhum juízo de valor aqui).

¹GALINDO, C.. Um tipo americano de tristeza: o próximo romance de David Foster Wallace e os próximos romances americanos DOI: 10.5007/2176-8552(0.7.2008)(125-138). outra travessia, UFSC , 7, 2009. Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/11984>. Acesso em: 01 Dez. 2012.

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David Foster Wallace
(Foto: Flavorwire)
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo é a primeira coletânea de não-ficção de David Foster Wallace lançada no Brasil, e o “Ensaios” estampado na capa é mais um facilitador editorial do que um indicador correto (fato corrigido pelo tradutor no prefácio). Pelo menos três dos seis textos totais são claramente reportagens: sim, com esse estilo e essa proposta estética muito pessoais, e com elementos que extravazam o jornalismo, mas ainda reportagens (me refiro, é claro, a Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer e Pense na lagosta).

Um dos outros três está num espaço entre a reportagem e a pura reflexão (Federer como experiência religiosa, que, justamente por causa daquele estilo de descrições praticamente obsessivo, pode ser uma experiência realmente traumática para quem não tem um mínimo afeto pelo tênis como esporte). Uma palestra emocionante sobre o humor em Kafka e um discurso de paraninfo (que, aparente e superficialmente, esbarra num discurso de auto-ajuda com alto grau de ambição estética) completam a coleção.

No prefácio de Daniel Galera, ele explica por que E unibus pluram e outros ensaios importantes ficaram de fora: pela proposta editorial de trazer textos introdutórios da não-ficção de Wallace. Mas o ponto principal desse texto do Galera, com o qual eu concordo integralmente, é que a não-ficção de Wallace é mais acessível do que os seus contos, por exemplo, de Brief interviews... Mas não se engane: a mesma verborragia, o sarcasmo contumaz e as notas de rodapé enormes, fatores que entre outros caracterizam a voz narrativa de DFW estão presentes (e muito).

“Aqui está em jogo, acredito, a sutil vergonha generalizada que acompanha a autoindulgência, a necessidade de explicar para quem quiser ouvir por que a autoindulgência na verdade não é autoindulgência. Tipo: nunca vou receber uma massagem apenas para receber uma massagem, vou porque meu velho problema nas costas causado por uma lesão esportiva está me matando e mais ou menos me forçando a receber uma massagem; ou tipo: eu nunca apenas “quero” um cigarro, eu sempre “preciso” de um cigarro.”

Fatores, exatamente, que fazem a leitura da não-ficção de Wallace ser uma leitura memorável.

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Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo
David Foster Wallace
Trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari
312 páginas
Preço sugerido: R$44,50

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O artigo de Galindo continua no sentido de relacionar a obra de David Foster Wallace com a de outros ficcionistas norteamericanos (como Jonathan Franzen e Thomas Pynchon), e termina numa bela conclusão sobre a própria missão de Wallace nesse contexto. Vale a pena a leitura.

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Por coincidência, o escritor André de Leones publicou uma resenha da coletânea de ensaios hoje, no Estadão. Sérgio Rodrigues também escreveu sobre ela.

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Como ficar sozinho
Jonathan Franzen
Trad.: Oscar Pillagalo
328 páginas
Preço sugerido: R$46,00