segunda-feira, 30 de julho de 2012

serrote #11


Dois ensaios comentados

A serrote é uma revista quadrimestral publicada pelo Instituto Moreira Salles (que além de várias ações culturais, também mantém esse blog bacanão), e se intitula uma “revista de ensaios, artes visuais, ideias e literatura”. Tem cara e preço de livro, mas o projeto gráfico e a diversidade de pensamentos difundidos pela revista raramente são encontradas num único volume de ensaios. 

A edição lançada no último Festival Literário Internacional de Paraty (#11), chama atenção pelo time de ensaístas e articulistas, estampados na capa: entre outros, Alberto Manguel, Christopher Hitchens, Denis Diderot, Enrique Vila-Matas, Harold Pinter, Samuel Beckett, Susan Sontag... Mas, mais do que isso, a qualidade das ideias discutidas por aqueles menos conhecidos no Brasil é muito alta. E é justamente por isso - por um debate estético de alto nível - que o modelo da serrote deveria ser mais difundido no país: por não ter um caráter necessariamente noticioso (Diderot, por exemplo, escreveu o ensaio publicado na revista em 1768), ela escapa de vários lugares-comuns que caracterizam a imprensa mais próxima das hard news e estabelece um modelo de periódico intelectual que faz muita falta por aí.

Nesta edição (que terá dois ensaios comentados abaixo), há mais estrangeiros do que brasileiros, embora analisando os outros números da revista se perceba uma preocupação em buscar um equilíbrio nesse sentido. Na #11, destacam-se os seguintes ensaios ou artigos (estão de fora desta lista os ensaios visuais, por uma escolha pessoal): Objetos de arte (Jeanette Winterson), Escreve-se para observar como morre uma mosca (Enrique Vila-Matas), As vidas de Franz Tunda (Héctor Abad), Nabokov & Machado (Brian Boyd), Os escritores e o dinheiro (Simon Leys) e P de ponto final (Alberto Manguel). Listas são sempre injustas.

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Abaixo, seguem comentários sobre dois ensaios publicados na serrote #11: Objetos de arte (Jeanette Winterson) e Os escritores e o dinheiro (Simon Leys).

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Simon Leys
O texto do belga Simon Leys¹ (1935, que tem livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras e pela Contraponto; o ensaio “Os escritores e o dinheiro”, publicado na serrote #11, foi traduzido por André Telles) é, antes de tudo, de morrer de rir. Num tom de crônica, Leys discute, com base em citações e pequenas reflexões de escritores e editores célebres, a relação tensa e (linha geral do ensaio) completamente imprevisível entre literatura e dinheiro.

No primeiro parágrafo, a citação do pensador Samuel Johnson (1709-1784) é matadora: “Homem algum, a menos que seja um completo idiota, gostaria de escrever qualquer coisa na vida, exceto sendo pago para isso”. Ora, o tom iluminista é evidente, mas o cinismo do inglês não é no mínimo incômodo?

O pensamento, por outro lado, contraria um dos grandes eixos de reflexão de um filósofo como Schopenhauer (que escreveu suas obras aproximadamente cem anos depois de Johnson): “Os honorários [...] são, na verdade, a perdição da literatura. Só produz o que é digno de ser escrito quem escreve unicamente em função do assunto tratado” (na edição da L&PM Pocket de A arte de escrever, 2011, tradução de Pedro Süssekind). O que Johnson pensaria de um blog como este e de seu autor? O mais completo idiota, provavelmente.

Voltando ao ensaio, Leys continua sua peregrinação levemente histórica sobre o tema e chega ao momento em que os escritores passam a sua tutela da Corte e da aristocracia para, enfim, a edição moderna. Entre outros retratos dessa relação citados por Leys, o de Louis Ferdinand Céline (numa carta à Gallimard, célebre editor francês, que pedia a Céline paciência para receber um adiantamento) sobressai: “Paciência, virtude dos burros e dos cornos! Quitandeiro miserável! Ah, por que não limpa a bunda com meus contratos e me alforria de sua sórdida birosca?!”.

Ao analisar o relacionamento entre editores e escritores, o autor do ensaio propõe uma reflexão interessante: sobre a literatura em si, sempre foi difícil afirmar que ela é uma profissão; quanto à edição, não há dúvidas: ela é regida pelas leis mais severas de um mercado sufocante. De qualquer forma, o editor francês do final século XIX, P.-V. Stock teve uma epifania curiosa sobre o seu trabalho: “Um editor sempre perde dinheiro publicando – logo, todo o segredo está em publicar pouco, se possível nada”.

A conclusão do ensaio, também muito interessante, fica para o leitor.

¹Simon Leys, na verdade, é o pseudônimo de Pierre Ryckmans.

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Jeanette Winterson
A densa reflexão da inglesa Jeanette Winterson (1959, autora de romances publicados no Brasil pela Rocco e pela Record; este ensaio foi traduzido pelo professor Christian Schwartz, aqui de Curitiba) começa a partir de uma experiência pessoal (a visão de um quadro que a atrai profundamente numa caminhada por Amsterdã; “vi um quadro cuja atração sobre mim foi mais forte do que a capacidade de seguir caminhando”) e parte para um ensaio muito bonito sobre o papel da arte na sociedade contemporânea.

Ela começa dizendo que a “linguagem da arte, qualquer arte, não é nossa língua materna” e descreve seu método de aprender a apreciar quadros (a autora fala constantemente em pintura, mas também estende as reflexões para as outras artes, à literatura inclusive): entre inúmeros livros de arte e incursões por galerias e museus, o seu método de “leituras” faria um oito. Passearia entre clássicos e modernos para não cair em vícios. Critica a quantidade enorme de informações que são impostas às exibições públicas dos quadros (“canonizar um quadro é uma maneira de matá-lo”), e enumera de um jeito muito legal o que se encontra pela frente quando se dedica à contemplação de um objeto.

Mas os trechos realmente brilhantes do ensaio vêm no final. Em resposta à pergunta “como manter o aparelho receptor [de arte] funcionando”, Winterson encara frontalmente o senso comum ao afirmar que o gosto (do público) pouco tem a ver com as obras de arte em si (para ela, a pergunta “Eu gosto disso?” deve sempre ser o ponto de partida, nunca a conclusão).

“Todos os dias, de inúmeras maneiras, você e eu nos convencemos de nós mesmos. A verdadeira arte, quando nos acontece, desafia o ‘eu’ que somos”, diz a autora, e para isso a arte precisa de um esforço constante do seu público (um “anátema para a cultura popular”). A preocupação em soar elitista é rebatida por uma bela defesa da arte como fundamento para o pensamento e para a vida humana:

“... o trágico paradigma da vida humana é o da carência, da perda, da finitude, de uma primitiva maldição que não foi vencida pela tecnologia nem pela ciência médica. A arte se interpõe a essa maldição. Faz suas objeções. Substantiva, torna-se uma força ativa, para além do item de colecionador [...]. A arte, toda a arte, é a linha de comunicação que não pode ser rompida pela indiferença ou pelo desastre. Contra a morte de todos os dias, ela não morre”.

A conclusão que se segue é interessantíssima, mas é melhor lê-la na revista mesmo.

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revista serrote #11
Editor: Paulo Roberto Pires
Instituto Moreira Salles (2012)
224 páginas
Preço sugerido: R$34,50


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A leitura de não-ficção é fundamental, no mínimo, para entender as leituras de ficção.

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

O livro dos insultos
H. L. Mencken
Seleção, tradução e prefácio: Ruy Castro
264 páginas
Preço sugerido: R$52,00

Mas se prepare: Mencken é insuportável.


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