Por outro lado, a coisa mais parecida com zumbis que se produziu na literatura brasileira do século XX, salvo engano, foi a revolta dos mortos no monumental Incidente em Antares, do gaúcho Érico Veríssimo. Em Antares, os mortos insepultos, porém, não são burros e sedentos por carne humana, antes, fazem uma análise sociológica e política de sua época, provocam uma revolução por baixo dos panos, e o resto você confere lendo o livro por aí.
É também de um autor gaúcho a experiência com zumbis tema desta resenha: Antônio Xerxenesky (1984) escreveu e lançou Areia nos Dentes em 2008 pela Não Editora, uma editora independente que criou junto com cinco amigos e que hoje em dia já tem um catálogo respeitável. Relançado pela Rocco em 2010 (com um cuidado gráfico bastante apurado, capa e edição) com uma orelha elogiosa escrita pelo Daniel Galera, o livro também foi finalista do Prêmio Açorianos.
O próprio Galera lembra, na orelha desta edição, que a temática zumbi carrega nas costas uma legião de fãs de histórias que simplesmente deram certo: discutir esteticidade nesse campo pode não ser uma boa ideia, porque além de correr o risco de contrariar muita gente, a discussão pode ser simplesmente deixada de lado. Não há dúvidas, histórias com zumbis tendem a dar certo.
Mas falando em literatura com ambição estética séria, o público é diferente daquele que usualmente curte zumbis (os gostos, é claro, não são excludentes nesse caso, mas...). Portanto, é no mínimo ousado que um escritor com pretensão artística escreva sobre... zumbis. Mas, e esse é o ponto alto, Xerxenesky não escreve sobre zumbis: ele os utiliza como uma estetização de um sentimento profundo e muito humano, relacionado à morte, que em muitos outros livros está retratado de maneiras diferentes.
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Trecho:
“Ela caminhou para longe da sombra. O relógio bateu três horas da tarde. Os cabelos dela reluziam na claridade do dia, e qualquer traço de idade desapareceu, como se ela tivesse sido congelada aos dezesseis anos. Ela piscou e o mundo de Thornton chegou ao fim, para sempre devastado pela imagem de Maria contra o sol, irradiando”.
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Antônio Xerxenesky (Foto: André Hilgert) |
O fato é que os zumbis compõem uma parte bastante superficial de Areia nos Dentes (mas é tamanho o fascínio e a desconfiança que eles a princípio exercem que se considerou importante esclarecer), assim como o faroeste que lhe dá nome e boa parte do conteúdo: outra ousadia do autor, que aqui pode também ser interpretada como uma pirotecnia arriscada, foi montar personagens mexicanos, numa história que se passa no México.
Agora é necessária uma explicação: o grande destaque do livro (que inclusive valida todas as pirotecnias temáticas) é a sua estrutura. As perguntas “quem narra” e “por que narra”, geralmente bastante necessárias hoje em dia, estão o tempo todo rondando a obra, e as soluções que o escritor busca raramente deixam a desejar. O que se percebe durante a leitura de Areia nos Dentes é a proposta estética e o domínio de um estilo bastante evidentes.
Quanto aos personagens mexicanos, nada de errado, mas a probabilidade de que eles tenham um tratamento mais superficial é maior quando se escreve sobre um ambiente, digamos, longínquo. É claro que não se podia escrever um faroeste no Brasil, mas o ponto é que aquele que, no livro, narra o faroeste, e que está nos dias atuais, também é mexicano. Se o narrador fosse porto-alegrense, como o autor, ele certamente seria mais complexo.
Outro porém presente no texto é o uso de frases exageradas, que batem de frente com a leveza com que o livro é narrado. Para citar um exemplo, lá na página 37 o narrador diz: “A força da regurgitação inundou os olhos de Juan com aquela água salgada que convém chamar de lágrimas...”. Um editor mais cuidadoso daria conta de uma frase como essa e evitaria o tropeço no texto.
Mas, citando Daniel Galera: “Eis tudo que você precisa saber sobre Areia nos dentes: tem zumbis no meio”.
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“Os mortos não ficam onde estão enterrados”. A frase de John Berger serve como epígrafe de um romance de Edney Silvestre, mas também serve a Areia nos Dentes, como um mantra quase inaudível, mas que no fundo, sob as camadas da narrativa estrutural bem sucedida de Xerxenesky, se faz ouvir, muito claramente.
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Areia nos dentes
Antônio Xerxenesky
144 páginas
Preço sugerido: R$24,00
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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Se um de nós dois morrer
Paulo Roberto Pires
124 páginas
Preço sugerido: R$36,90
A estrutura narrativa também é neste livro um fator relevante na estética do autor, que, segundo o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, "tão vila-matasiana quanto – ou talvez mais do que – a obra do próprio Vila-Matas".
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