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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Livro dos Novos

O que é motivo para uma antologia? Na verdade, qualquer um: sexo, faixa etária, assunto, estilo, pertencer ao grupo certo de amigos, ter sorte, ter editor ou agente influente, ou, como eu acredito que seja o caso, a geografia (embora o motivo seja, obviamente, também, a faixa etária). O Livro dos Novos (Travessa dos Editores, 2013, 136 p.), organizado pela escritora Adriana Sydor e lançado recentemente em Curitiba, reúne 16 autores de até 30 anos que nasceram ou vivem em Curitiba e Região. São apostas – poucos já tiveram textos publicados em outras ocasiões – referendadas por uma editora tradicional da cidade.

Embora eu continue acreditando que a geografia é o principal atributo da coletânea (e o título me desminta), o que mais se nota pela ausência, nos contos, é a própria geografia. Não que isso seja um problema em si, mas poucos dos contos da antologia delimitam uma geografia precisa. Não a mistificação do Brasil, nem de Curitiba, não. Por exemplo: “No ringue de Hemingway”, um dos melhores contos do livro, de Felipe Franco Munhoz, o início já situa tudo muito bem: “San Francisco de Paula, Cuba”. Conseguir estabelecer uma geografia para a literatura (que precisa ir além do “campo” x “cidade”), acredito, é um bom desafio que merece ser encarado com mais vigor.

Há opções estéticas diversas entre os contos, mas nem tantas: a maioria das histórias se contenta em narrar um fato passado e pronto. Mas várias, é claro, vão além: “Guarda-roupas”, de Arthur Tertuliano, opta por criar um imaginário vasto para, com elegância e desenvoltura, contar uma história de um transgênero. A carta de “Noite em Antônio Maria”, de Daniel Zanella, é comovente. “Acabou”, de Guylherme Custódio, consegue cumprir bem uma das lições de Ricardo Piglia nas Teses sobre o conto: contar as duas histórias numa só.

Outro fio que une, de maneira positiva, a maioria dos textos da antologia é o controle do narrador: a escolha da primeira pessoa, presente em 11 dos 16 textos, é a escolha mais óbvia, mais segura, e geralmente a mais acertada. Criar um foco narrativo na terceira pessoa é mais arriscado: assim como é arriscado usar muitos verbos no pretérito mais que perfeito (“acabara”). A não ser que o objetivo seja claramente escrever um texto situado em outro tempo, que não o séc. XXI, como acontece em “Híbrida Companhia”, de Walter Bach, o uso do pretérito mais que perfeito é, quase sempre, desnecessário, chato e ingênuo.

A variedade temática dos contos, por outro lado, é um fator positivo. “Hominho”, de Yuri Al’Hanati, é narrado em primeira pessoa por um fazendeiro que vê seu cavalo preferido esfaqueado por um parente deficiente mental; “Como fumaça”, de Rodrigo Araújo, é um libelo quase modernista em defesa do tabaco; “Da falta de existir”, de Melissa R. Pitta, usa a metalinguagem numa tentativa de abarcar a insignifância da literatura; “Era”, de Marco Antonio Santos, tem um dos melhores e mais simples inícios do livro: “Entre 1997 e 2002 fui um cantor famoso”; “Entre Guaco & Azeitonas”, de Celso Alves, cria um ambiente faroeste para uma história envolvente.

Senti falta de maior experimentação e liberdade narrativa, mas os textos são, quase todos, muito bem escritos. A iniciativa de uma coletânea dessa espécie é bastante elogiável: num mercado editorial burocrático, conseguir publicar pode ser, para muitos, uma conquista muito grande. Espero e acredito que não tenha sido, para ninguém, um experimento constrangedor.

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Livro dos Novos
Adriana Sydor (org.)
Travessa dos Editores (2013)
136 p.
R$30,00.

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Revista Granta, V. 9 - Os melhores jovens autores brasileiros
Vários autores
Alfaguara (2012)
288 p.
R$34,90

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Marcio Renato dos Santos: "Todos falam, ninguém se entende. É o caos."

O nome impronunciável do segundo livro de contos de Marcio Renato dos Santos (1974), jornalista e escritor curitibano, é uma resenha em si mesmo: Golegolegolegolegah!.

Segundo Marcio Renato, autor de Minda-au (contos, lançado pela Record em 2010), o título impronunciável faz alusão à incomunicabilidade. “Estamos no século 21 e, apesar dos equipamentos, do avanço e da disponibilidade dos recursos tecnológicos, quase não conseguimos nos comunicar. Todos falam, ninguém se entende. É o caos. É a incomunicabilidade. É isso que está no livro”, comenta.

Num ótimo projeto gráfico da Travessa dos Editores, com ilustrações de Marciel Conrado, Golegolegolegolegah!, lançado mês passado em Curitiba, tem seis contos, sempre narrados em primeira pessoa. Na entrevista a seguir, Marcio Renato dos Santos, que também é mestre em Estudos Literários pela UFPR e curador do projeto Tulipas Negras Editora, fala sobre o novo lançamento e tenta, enfim, comunicar-se.

Biblioteca Vertical: No seu primeiro livro, Curitiba parecia ser um personagem principal, muitas vezes a cidade era trazida para o centro do conto. Em “Gole...” você diz: “Posso estar em Maringá, Florianópolis, Caxias do Sul ou Campinas. Que diferença faz?”. O que mudou? Curitiba representa alguma coisa na sua criação artística?

Marcio Renato dos Santos: Houve esforço, não da minha parte, mas de algumas pessoas para dar a entender que Minda-Au, meu primeiro livro, publicado em 2010 pela Record, seria uma obra autobiográfica. Curioso, não é mesmo?  Ficção, que é quase indefinível, mistura memória, delírio, sons, música, sonho, linguagem e algo que não se define. 

Autobiografia? Como? 

Nos sete contos de Minda-Au, havia sim referência a ruas, praças e espaços públicos de Curitiba. Disseram que Curitiba seria cenário e até personagem de Minda-Au. Considero a opinião válida.

No entanto, em Minda-Au os narradores fazem referências a outras Curitiba, as Curitibas literárias, inventadas por Newton Sampaio, Dalton Trevisan, Jamil Snege, Fábio Campana, Roberto Gomes, Cristovão Tezza, José Carlos Fernandes, entre outros autores. Há conversa com as Curitibas da ficção. 

Já em Golegolegolegolegah!, não há nenhuma referência geográfica à capital do Paraná. Golegolegolegolegah! é um livro de circunstância, sobre a incomunicabilidade.  
Respondi? 

Acho que não. 

Curitiba representa, para mim, tudo. Até na criação artística. É a cidade onde nasci. O local onde moro e nasceu o meu filho Vitor. Trabalho, caminho e atravesso madrugadas, manhãs, tardes e noites em Curitiba. 

Mais do que tudo, Curitiba é uma cidade na qual não existe, nem em sonho, o que chamam de autofagia. Quem fala de autofagia em Curitiba desconhece o ser humano e o mundo. Quem fala de autofagia nunca esteve em Curitiba. 

Biblioteca Vertical: Todos os contos do livro são narrados em primeira pessoa. Isso é uma desconfiança, uma tática, um artíficio ou uma coincidência?

Marcio Renato e a pimenteira
(Foto: Daniel Snege)
Marcio Renato dos Santos: Um livro de contos, para mim, e já publiquei dois, é – mais do que tudo – um conjunto de textos que conversam entre si. O Gudryan Neufert, um amigo que é jornalista e mora em São Paulo, leu Golegolegolegolegah! e escreveu o seguinte: “O livro trata da incomunicabilidade moderna. A escrita em primeira pessoa traz as angústias silenciosas do eu. São seis contos que podem ser lidos aleatoriamente mas que também não escondem suas correlações temáticas”.

Perceba: é um outro olhar, e não o meu. O Gudryan afirma que os contos escritos em primeira pessoa não escondem suas correlações temáticas. O Gudryan leu, de fato, Golegolegolegolegah!.

Escrevi esses contos durante 2011. Em outubro daquele ano, reli e reescrevi os textos, e me dei conta de que havia uma conexão entre eles: todos tratam da incomunicabilidade. Os personagens estão acossados, no limite. Em dezembro de 2011, o Fábio Campana me telefonou e perguntou se eu tinha um livro para ele publicar pela Travessa dos Editores. Disse que sim, mas gostaria de publicar um livro com um nome impronunciável, Golegolegolegolegah!, para fazer alusão à incomunicabilidade. O Campana gostou da ideia e o livro de fato foi publicado pela Travessa dos Editores. 

Estamos no século 21 e, apesar dos equipamentos, do avanço e da disponibilidade dos recursos tecnológicos, quase não conseguimos nos comunicar. Todos falam, ninguém se entende. É o caos. É a incomunicabilidade. É isso que está no livro.

Posso fazer uma sugestão. Grave uma conversa. Qualquer uma. Em qualquer dia. Depois, transcreva a conversa. E conte quantas vezes as pessoas falam eu. Todos falam eu, eu, eu, eu, eu, eu, muitas, diversas vezes. O tempo todo.

Em um contexto desses, optei por narradores em primeira pessoa. 

Mas não vou ficar aqui, eu, eu, eu, apenas eu falando do Golegolegolegolegah!.

O poeta Sergio Napp vive em Porto Alegre: ele recebeu o livro e me a seguinte mensagem: “Acabo de ler o teu livro e, como de hábito, o que me surpreende é a linguagem. Teus contos são de circunstâncias e quase prescindem de personagens. Os personagens servem para que o conto se estruture em uma situação e não para serem o centro da história. Isto me agrada muito. É um tanto novo. Por outro lado, teus contos não fecham, fica um sabor de ‘e daí?’. Isto me agrada mais. Fazer o leitor pensar. O que une os teus contos é o movimento externo, avião, automóvel, o ônibus, caminhar, etc. Ao mesmo tempo, na maioria há um dinheiro que surge de repente e muda a vida. Isto dá uma unidade ao livro e, lá pelas tantas, pode-se pensar que sempre temos o mesmo personagem em tempos vários. O melhor dos contos? Vamos ver:’ Nevoeiro’ e ‘Cento e noventa’. Pra finalizar: o invólucro: um dos livros mais bonitos que eu vi nos últimos tempos. Dá um prazer enorme folheá-lo. Acho que vou relê-lo.”

Que tal a opinião do Napp?

Outro leitor atento é o Eleotério Burrego, que leu Golegolegolegolegah! e escreveu o seguinte: “Você conseguiu traduzir neste livro parte da angústia nos assalta dia a dia frente a tecnologia que invadiu nosso contato diário. Pulverizando as relações em coisas frívolas, dispersivas. Ótimo livro, muitas pessoas se identificarão nos vários contos bem escritos. Magnífico”

Creio que os olhares do Napp, do Eleotério e do Gudryan ajudam a responder. Ou não?

Ah, faltou afirmar: pode existir coincidência na vida, mas nas páginas, linhas e entrelinhas de Golegolegolegolegah! não há coincidência. 

Biblioteca Vertical: Tem uma passagem no conto “Cento e noventa” em que o narrador-personagem faz uma reflexão sobre dois artistas dos quais ele diz não gostar:

“É que li na capa do caderno de cultura uma matéria, exagerada, sobre um personagem que conheço faz tempo. Ele é músico, ou melhor, se considera cantor e compositor, mas eu não tenho a mesma opinião sobre o assunto. [...]
E esse outro Fulano, o que se acha escritor? Não, não pode ser. [...] Só pode ser pegadinha. É real? No twitter só falam dele. Está aí. É a unanimidade do momento.
Sem dúvida, mais um equívoco”.

Você também é jornalista e crítico de cultura, então diga: com que frequência o Marcio Renato dos Santos se vê com os mesmos pensamentos desse personagem (nesse trecho)? Há muitos “embustes” por aí?

Marcio Renato dos Santos: O personagem de “Cento e noventa” está morto. Desde a primeira palavra, desde a primeira linha do conto. Mas ele não sabe, pelo menos no início, nem desconfia de sua condição, situação. É um sujeito que desejou se tornar artista, mas entrou em outros enredos. Não se sabe se desistiu da arte ou se constatou que a criação artística não seria o seu caminho. No entanto, quando encontra conhecidos, do passado, que no presente narrativo são reconhecidos como artistas, ele surta. Eis um dos conflitos do personagem sem nome. 

As ideias do personagem do conto “Cento e noventa” representam uma mentalidade, não necessariamente a minha. 

Talvez até ao contrário. 

A ficção que escrevo não é autobiográfica. Eu não sou os personagens que invento. Não tenho nada, ou quase nada, a ver com os personagens de Golegolegolegolegah! Apesar da primeira pessoa. Aquele eu não sou eu.  O narrador de “Cento e noventa” dirige um carro: eu não sei dirigir. Sou pedestre.  Daí, você poderia comentar: Mas o narrador do conto “Zé Ruela” é um pedestre, não é? Mas aquele personagem só anda, e eu ando, mas também faço algumas outras atividades. 

Sobre a sua pergunta, não posso responder uma vez que não sou o personagem que, inclusive, está morto.

Biblioteca Vertical: Uma curiosidade: o que você leu, ou tem lido ultimamente, que valeu mesmo a pena?

Marcio Renato dos Santos: Tenho lido muitos textos de qualidade. Por exemplo, as crônicas, às vezes contos, que o Fábio Campana publica na Ideias são brilhantes, já leu? Ele é dono de uma das mais vozes literárias mais instigantes da contemporaneidade. Leio a crônica do Roberto Gomes a cada 15 dias na Gazeta do Povo. A crônica do José Carlos Fernandes toda sexta-feira na Gazeta do Povo. O texto do Rogério Pereira, sempre às segundas, no Vida Breve, uma ficção forte, única, com pegada. Os textos que o Luiz Rebinski Junior produz para o jornal Cândido, além do conto que ele escreveu chamado “Uma mulher com um W enorme”. Os perfis que Omar Godoy escreve todo mês para o jornal Cândido. Os textos do Felipe Kryminice na Ideias. Os posts do Arthur Tertuliano, e as resenhas que ele escreve para o Rascunho. A bossa do Renan Machado. Qualquer prosa do Guilherme Magalhães.

No que diz respeito a livros, estou fascinado com Os enamoramentos, de Javier Marías. Toda obra do Enrique Vila-Matas, mas daí é releitura. Todo dia leio um trecho de um livro do Vila-Matas. Também releio e recomendo Anedotas do destino, de K. Blixen, A árvore de Isaias, do Campana,  O conhecimento de Anatol Kraft, do Roberto Gomes, O coronel Chabert, do Balzac, O livro do medo, do Guido Viaro, Trato de silêncios, da Luci Collin, Sergio Y vai à America, de Alexandre Vidal Porto, Sexo, do André Sant’Anna e Pornopopéia, do Reinaldo Moraes. E também leio e releio o encarte do álbum Abraçaço, do Caetano Veloso.

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Golegolegolegolegah!
Marcio Renato dos Santos
Travessa dos Editores (2013)
80 páginas
Preço sugerido: R$30







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Trecho do conto "Cento e noventa":

"Mas, sabe, tive de abandonar a arte, sobretudo após me deparar com artistas expressivos.
Por quê?
Porque eu nunca, jamais seria um artista visceral. 
Não me conformo é com o fato de sujeitos sem talento, como eu não tinha e não tenho, não abandonarem a arte, como eu abandonei.
Mais do que isso até, o que me deixa perplexo, irritado e com vontade de gritar é que esses sujeitos seguiram carreiras, emplacaram obras e se consolidam como referências." (p. 71).

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Enquanto água, Altair Martins


No mais recente Paiol Literário, aqui em Curitiba, Altair Martins (1975) disse: “O narrador em terceira é perigosíssimo hoje. Porque é a pretensa verdade. É aquele narrador que pára e diz: “Fulano nascera…”. Não dá mais. Ninguém mais acredita nesse narrador que quer te convencer: “Eu tenho uma bagagem histórica sobre o personagem e agora vou mostrá-la”.”

Martins, que é doutorando em Letras pela UFRGS, já tem publicado quatro livros (A parede no escuro, romance de 2009, foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria autor estreante). O mais recente, a coletânea de contos Enquanto água (Record, 2011), é a reafirmação da frase do primeiro parágrafo. Em uma sucessão de contos, na maioria breves, Martins constrói uma obra cujo narrador está em constante crise: isso sem deixar de lado um grande talento para simplesmente contar uma história.

Os 18 contos — alguns deles já publicados em revistas ou outras antologias  são divididos em quatro partes: “Chuva na cara”, “Depois da chuva”, “Garoa” e “Água com gás”, e as histórias encontram uma convergência dentro de cada divisão. Os contos da primeira parte são, quase todos, brilhantes. Em “dois afogados”, o narrador utiliza recursos ousados (como placas de trânsito e uma alternância de vozes) para criar uma história que vai muito além da própria narrativa. Lembrei, lendo, de uma passagem de um livro de Luiz Felipe Leprevost que se encaixa magicamente aqui: “Segui placas de contramão”.

“homens de verdade” insere o tema da homossexualidade no livro narrando a história de jovens (crianças) cruéis. Um dos recursos utilizados nesses contos é o final arrebatador: quase sempre na última linha. Isso é muito difícil de ser bem realizado, e lembra, por exemplo, Cortazar. 

Altair Martins
(Divulgação Record)
A segunda parte, com apenas um conto, simboliza uma ficção um pouco diferente. Se é comum vermos uma linhagem que utiliza a própria literatura como artifício (da qual sou fã, assim como Altair Martins, pelo que parece; cito Enrique Vila-Matas como exemplo), Martins utiliza o conhecimento teórico da área de humanas para produzir um Mal de Montano às avessas: o personagem parece enlouquecido pelo próprio excesso de conhecimento (aparecem teorias de Peirce, Langmuir, Lévi-Strauss, Lacan, Borges, e outros).

A terceira sessão, “garoa”, guarda eco exatamente de Borges: uma metafísica aplicada que pretende criar um mundo particular, com elementos que pedem uma segunda olhada, e que te faz dizer: “é isso mesmo?”. Por exemplo, no conto “quase oceano quase vômito”:

“Aquele rio não aceitaria assim tão fácil. Dominava um continente e um pátio no oceano. E quando amanheceu completamente água, e nu, como se nascendo, não houve quem não se espantasse. Era o primeiro dos tantos rios que, sem explicação, voltavam à limpidez original. Eram rios tão puros que os leitos podiam ser lidos”.

A quarta sessão, “Água com gás”, mostra todo o talento do escritor ao praticamente fazer um resumo do livro: histórias interessantes com estruturas bem pensadas e nunca tradicionais. No conto “o mar, no living” (título de um poema de Carlos Drummond de Andrade, que dá a seguinte epígrafe: “o mar tudo recobre / sem nada asfixiar”), o próprio mar, isto é, a água invade o ambiente de uma festa de aniversário infantil:

“E então, mal a vela se acende, o mar entra no living, atravessando os vidros e ocupando, com azul e fauna, os espaços da fest. E posto seja mar e se comunique com o oceano, ele surpreende em ser tudo menos violento, e não apaga vela ou palma. Apenas que a festa segue, percebida pelos sentidos abafados. É a luz de uma vela sob o mar. É um parabéns afogado. São raízes da fumaça dentro d’água”.

É exatamente a água o ponto chave desse livro (claro): a água, que às vezes aparece apenas como rio, mar ou chuva, mas muitas vezes como metáfora de sentimentos tão humanos como a esperança, a saudade, o arrependimento, a traição e, em última instância, a morte.

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Outro aspecto importante na obra de Martins, segundo o próprio, é o engajamento. 

[A literatura] deve mostrar que existe uma pretensão de realidade, muito falsa, produzida às vezes pela mídia. Existe um Brasil da televisão e existe o Brasil real. Então, a função da literatura é esta: de alguma maneira corroer a verdade que pretende ser verdadeira. Por isso o engajamento. O escritor não pode deixar de mostrar que essa realidade é falsa e mostrar uma outra realidade possível — que, ao meu ver, só a literatura vai mostrar.

Quando uma mulher enfrenta dificuldades com o marido alcoólatra e tenta fugir com o pastor da igreja; quando um homem muito religioso, esmagado por uma culpa muito grande, se vê incumbido de cuidar de duas filhas e percebe que não é capaz; quando uma mera brincadeira doméstica vira tragédia. Pequenos exemplos do engajamento de Martins: sempre recoberto por uma camada de excelente prosa ficcional, percebe-se um texto preocupado com o lugar que a própria literatura pode ocupar em uma sociedade de não-leitores.

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Trecho do conto “unha e carne”, que narra a relação de Irene (mãe), Luciana (filha) e Jorge (padrasto):

“Luciana pediu café. Antes que Irene se rendesse e lhe pedisse para não acreditar nas coisas que ouvia, a filha arranjou modos de olhar o relógio, inquietar os cabelos, atirar os olhos aos cantos e dizer que tinha de ir, senão chegaria atrasada ao trabalho. Irene, ao portão, sentia então que mais coisas ficariam à espera da água. A filha ainda disse Não precisa ir se não quiser. Mas Irene sabia, desde que Luciana fora morar sozinha, que aquilo tudo entre a filha e Jorge era como a louça. Não precisava lavar se não quisesse.”

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Enquanto água
Altair Martins
160 páginas
Preço sugerido: R$27,90

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No vídeo abaixo, Reginaldo Pujol Filho e Altair Martins fazem uma divertida leitura do conto "Quero ser Altair Martins", do livro Quero ser Reginaldo Pujol Filho, já resenhado por aqui.



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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Suicídios exemplares
Enrique Vila-Matas
Tradução: Carla Branco
Cosac Naify (2011)
208 páginas
Preço sugerido: R$49,00

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Aquela água toda, João Anzanello Carrascoza


O paulista João Anzanello Carrascoza (1962) é conhecido no cenário literário brasileiro por carregar uma grande tradição: a contística. Autor de diversos livros de contos, e uns poucos romances encaixados como infanto-juvenil (são mais de 20 no total), o publicitário é um prolífico contista que ainda leva outra bandeira: a de poeta das coisas simples.

Foi o que ele mesmo disse na FLIP 2012, na mesa em que participou, ao lado de Zuenir Ventura, Dulce Maria Cardoso e João Cesar de Castro Rocha. “Quero buscar a poética dos dias que não são FLIP”, disse naquela ocasião. Disse Carrascoza, outro dia: “Drummond falava que há reservas de poesia no mundo: por que não buscamos isso com mais frequência?”.

Num escritor tão prolífico, é de se esperar alguma irregularidade: no meio de contos de menor impacto (mas sempre com uma habilidade narrativa muito própria, uma voz fortíssima), há algumas pérolas, brilhantes. É o que acontece com o recente Aquela água toda (2012), publicado pela Cosac Naify num projeto gráfico ousado, no qual os contos são ilustrados por Leya Mira Brander, e as ilustrações num papel vegetal, o mesmo que reveste o livro.

Os onze contos do livro são pequenos recortes de vidas tradicionais: o ponto de vista familiar é sempre conservador, sempre paternalista. As famílias, sempre muito normais, com pequenos ódios e grandes amores; as percepções, infinitas e momentâneas, de embates que ocorrem com todos, todos os dias. Isso é marcado muitas vezes no início dos contos:

“Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão” (p. 33)
“Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de descuido. O casal não iria [...]” (p. 37)
“Aconteceu que o pai, à mesa de jantar, disse de repente: [...]” (p. 51)
“Havia um homem. Sua mulher, as meninas” (p. 86)

Há, na maioria dos contos, uma busca incessante pela “inteireza” (palavra que aparece com frequência), a inteireza de qualquer coisa, da vida, da família, do amor: uma busca que já começa, no mínimo, incerta. Incerta porque há a necessidade de se escrever um conto sobre isso.

João A. Carrascoza também é redator
publicitário e professor universitário
de propaganda (Foto Divulgação
Cosac Naify)
Aqui há outra dúvida sobre os contos de Carrascoza, de maneira geral: onde está a necessidade de escrever certas coisas? Essa necessidade existe? Livros muito fortes passam a seguinte impressão: a de que precisam ser escritos. Passar a impressão de uma falta de necessidade parece um indício de fraqueza: impressões. Ouvindo uma longa entrevista de Paulo Leminski (gravada em 1982), percebe-se a certeza nas palavras dele: a poesia não tem porquê. Mas e a prosa, é tão certa nessa não-necessidade? Duvido muito.

Por exemplo, o conto que dá título ao livro. Em quatro páginas, o narrador (que acompanha mais de perto o menino da Família) descreve o encontro do menino com o mar e depois o reencontro com a Família que o esquece no ônibus: tudo num ambiente carregadíssimo de emoções em que a imagem “aquela água toda” aparece repetidamente.

Outro exemplo, o conto “Cristina”, em que o narrador, agora em primeira pessoa, é o menino, e vive uma paixão que, se você é de classe média e urbano (como eu sou), já deve ter vivido: a primeira ida ao cinema acompanhado, as dúvidas de pegar na mão ou não pegar, e o beijo no rosto na despedida: “O meu corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que poucas vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim”. Lugar-comum?

Este o pior de todos: “Grandes feitos”, que parece ser um dos preferidos do autor, se não o preferido (deste livro). Foi a leitura que ele fez na FLIP, em julho. A voz do narrador é inconfundível, isso não se pode negar. Mas o conto é, em uma palavra, desnecessário. Um derramamento de imagens piegas sobre uma família tradicional (Pai, Mãe, Filho): “Vestiram-se em seguida, sentindo a pele fresca como a manhã que continuava a vazar pela janela adentro, e que nem dava mostras de que envelhecia - era preciso cerrar bem os olhos para captar seu avanço, lento”.

O que estou tentando dizer é que Carrascoza levou a ideia de pegar a poesia do cotidiano a um limite muito tênue entre a poesia de coisas simples (que ele quer fazer) e o retrato piegas de rotinas desinteressantes (o efeito atingido por este livro). É arriscado demais.

Agora, ele acerta justamente quando recua um pouco deste limite e escreve relatos que, embora abordem temas do cotidiano, não são tão corriqueiros quanto uma ida ao cinema. “Recolhimento” e “Mundo justo” são as duas pérolas emocionantes do livro. Nesses dois contos, o autor utiliza a sua voz inconfundível e a habilidade narrativa que carrega para construir duas histórias poderosas.

Apenas uma pequena prévia para o leitor: em Recolhimento, o narrador em terceira pessoa narra a partir de um suposto funcionário público que recolhe animais de estimação mortos; em Mundo justo, em primeira pessoa, o narrador narra suas memórias de uma época da infância na qual jogou basquete.

Como falei, as famílias de Carrascoza, embora sempre tradicionais, carregam juntas uma busca pela “inteireza”, fato que pode ser entendido como a fuga da morte: há constantemente o medo da morte, o temor de que algo — quase sempre em relação à Família — ainda esteja por fazer, e que este algo ainda fique por fazer quando a hora da morte chegar. Equilibrar os personagens na linha que separa a razão da loucura nesse ponto, eis o desafio lançado por esse narrador.

Outra coisa, para não ser injusto. Carrascoza prega aquela ideia de poética das coisas simples: é a sua proposta, o seu habitat como ficcionista. A pergunta certa, então, é a seguinte: ele se apega a esta ideia (e a cumpre) com Aquela água toda? Sem dúvida. Analisar o autor de fora desse prisma (como eu fiz aqui) pode ser apenas um artifício crítico desnecessário.

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Aquela água toda
João Anzanello Carrascoza
Ilustrações Leya Mira Brander
96 páginas, 11 ilustrações
Preço sugerido: R$39,90

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
68 contos de Raymond Carver
Raymond Carver
Tradução: Rubens Figueiredo
712 páginas
Preço sugerido: R$54,00

Os contos de Carver também passam pelo tema familiar. Este livro é uma obra-prima.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Quero ser Reginaldo Pujol Filho, Reginaldo Pujol Filho

Desagravo à ficção sobre literatura

O relativo sucesso no Brasil de escritores como Enrique Vila-Matas levanta um ponto de vista curioso, com certeza, e conservador, talvez: o de que a literatura metaficcional seja, em última instância, um problema em si mesma. O problema: fazer ficção sobre escritores e sobre literatura levaria, fatalmente, (1) ao extermínio do romance, uma vez que a literatura acabaria e (2) à restrição cada vez maior da palavra escrita. Algo como o fim da história marxista. 

Ora, nada mais injusto: se faz literatura sobre escritores e sobre livros desde Cervantes. Como fala James Wood, a invenção do flaneur (com Flaubert) transforma todos nós (personagens ou leitores) em escritores. Dois autores realistas que, entre outros assuntos, fazem literatura sobre escritores e sobre livros: Philip Roth e J. M. Coetzee. Brasileiro: os primeiros livros de Reinaldo Moraes têm o protagonista escritor. Não dá para falar que estes exemplos são influenciados por alguma mania recente, ou que a literatura deles leve a um buraco sem fundo, ou que eles sejam tomados por uma vontade de pirotecnia estilística (na verdade, personagem escritor não tem nada de pirotécnico).

Ler uma história sobre adultério pode agradar um leitor mais do que uma história sobre congestionamento (ou, afinal, sobre um escritor). Se Machado ou Cortázar não tivessem escrito suas histórias da maneira como escreveram, elas seriam reduzidas a clichês sem sal (triângulo amoroso e tédio do congestionamento). Foi a sua realização que as fez, e não previamente seu conteúdo. 

O livro do gaúcho Reginaldo Pujol Filho (1980) pega toda esta discussão e a transforma num exercício literário autoirônico. E vai além: acrescenta o jogo muitas vezes hipócrita das influências, as assume (e debocha delas), e escreve seu segundo livro com um título bem claro: Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, em 2010).

A partir daí, os contos são todos denominados assim: “Quero ser Miguel de Cervantes”, “Quero ser Luigi Pirandello”, etc, e na maior parte do tempo refaz, satiriza, parodia e reproduz a literatura original de cada escritor. Pujol Filho tensiona os lugares-comuns da influência de escritores famosos até um ponto de ruptura (aqui o sucesso possível) para então criar uma voz própria (não é esse o desejo expresso no título?). É arriscado.

O problema é quando essa tensão não é suficiente: ao invés de alcançar a originalidade, o autor cai na armadilha da solução fácil ou óbvia. Por exemplo: ao levar ao pé da letra a vontade de se livrar da influência de Rubem Fonseca e por conseguinte se livrar do escritor, no conto “Quero ser Rubem Fonseca” o narrador tenta literalmente atropelar o autor de “Agosto”. Claro que a ironia (e o subtexto) nesta tentativa é muito clara: mas por um critério de autenticidade, este é o conto que não deveria estar no livro. Essa solução também não ocorre apenas neste texto.

Mas as coisas melhoram. Em “Quero ser Luis Fernando Verissimo” há uma mímica de um diálogo (sempre engraçado) do famoso analista de Bagé com alguém que, afinal de contas, quer ser Luis Fernando Verissimo. Em “Quero ser Gonçalo M. Tavares”, o narrador é o Senhor Pujol que quer entrar n’O Bairro do angolano e exulta quando encontra a “dízima semântica”. Em “Quero ser Italo Calvino” o narrador anota e discorre sobre seis ideias para “Quero ser Italo Calvino”. Com “Quero ser Machado de Assis”, Pujol leva o narrador machadiano ao limite do absurdo:

“Bem, continuemos a história. Contudo, como se narra com um personagem dormindo no sofá e outro ausente? Complica-se assim a minha atuação. Até esperaria para ver o que acontece, mas o que acontece é que há um leitor do outro lado, talvez já esperando em uma fila de banco, em uma sala de espera, em um aeroporto, não deve estar disposto a uma metaespera. Resta-me acordar a moça e provocar algum acontecimento digno de narração. Pois vou [...]”

Reginaldo Pujol Filho (Foto: Vini Marques)
O conto que deu origem ao livro, segundo o próprio autor em uma nota, é “Quero ser Amílcar Bettega Barbosa”, baseado num conto de Amílcar em que o seu o narrador encontra e entrevista Júlio Cortázar e, surpresa, percebe que o argentino esqueceu algumas folhas com manuscritos inéditos. A história é previsível, mas no meio dela há um exercício de investigação interessante. 

Não é regra, mas boa parte dos contos traz um personagem “real”, um escritor que de fato existe (por exemplo, Amílcar Bettega Barbosa), mas é ficcionalizado por Pujol. James Wood fala sobre isso no “Como funciona a ficção” (Cosac Naify, 2012, 2. ed):

“Talvez porque eu não saiba bem o que é um personagem, acho muito comoventes aqueles romances pós modernos [...] que nos apresentam personagens ao mesmo tempo reais e irreais. Em todos esses romances, o autor nos pede para refletir sobre o caráter fictício dos heróis e heroínas que aparecem no título. E, num excelente paradoxo, é justamente essa reflexão que desperta no leitor o desejo de tornar esses personagens ‘reais’, de dizer aos autores: ‘Eu sei que eles são apenas fictícios - você já me disse várias vezes. Mas eu só consigo conhecê-los tratando-os como reais’”

As narrativas “extra-literárias” também fazem parte do livro de Pujol: a escolha por envolver escritores e personagens de ficção (da literatura) nas histórias não é um valor intrínseco, como querem acreditar aqueles que defendem as ideias de que falei no início do texto. Além disso, o que há aqui é um provocador, realizando (e tentando realizar) mimeses descaradas de seus autores favoritos, sem medo de admiti-las, explorá-las, debochar delas: um caráter muito mais honesto do que tentar se esconder por trás das mesmas.

Nenhum escritor gosta de responder à pergunta “quem são suas influências”. O ponto é refletir até que altura ela é um lugar-comum e até que altura ela é assustadora.

Prova de que esse tipo de literatura não se encerra em si mesma é a seguinte: qualquer um pode ficar à vontade para escrever o seu próprio “Quero ser Reginaldo Pujol Filho”, fazendo ele mesmo uma mimese, de, por que não, Reginaldo Pujol Filho.

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Quero ser Reginaldo Pujol Filho
Reginaldo Pujol Filho
144 páginas
Preço sugerido: R$28,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Sobrescritos - 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos 
Sérgio Rodrigues
Arquipélago Editorial (2010)
152 páginas
Preço sugerido: R$25,00

domingo, 26 de agosto de 2012

Voláteis e Ainda orangotangos, Paulo Scott

Paulo Scott (Divulgação
Record)
“Eu realmente não sei se sou escritor”. A frase de Paulo Scott, dita no Festival Nacional do Conto deste ano (clique aqui), é emblemática: os personagens dos seus dois primeiros livros de prosa  —  Ainda orangotangos (contos, Livros do Mal, 2003, Bertrand Brasil, 2007) e Voláteis (romance, Objetiva, 2005)  —  também não sabem se são personagens, em última instância, se são humanos. Se sabem, pouco sabem o que de fato estão fazendo.

Uma ideia de fracasso? Talvez, mas segundo o próprio, em uma entrevista ao Jornal Rascunho: “meus personagens lutam para não fracassar. O fracasso é um estigma recoberto pela variação de quem olha: de onde olha e como olha. Pode ser que nem exista.” Na hora, vem à tona aquele aforismo de Kafka (na edição da Penguin-Companhia, tradução de Modesto Carone): “Só aqui o sofrimento é sofrimento. Não como se aqueles que aqui sofrem devam ascender a outro lugar em função desse sofrimento, mas no sentido de que aquilo que neste mundo se chama sofrimento, em outro mundo, inalterado e tão somente libertado do seu oposto, é êxtase.” 

E é este êxtase que se mistura aos sentimentos dos personagens — que parecem guardar um parentesco comum, uma fina linha que os liga, e os sustenta, torna-os a semelhança maior entre os dois livros.

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Voláteis é um thriller urbano característico: o protagonista é um desenhista ambicioso insatisfeito com o que tem, e os personagens que transitam ao seu redor são de diferentes classes sociais (há, porém, uma preocupação com a classe média), discutem a questão racial e parecem quase sempre fazer as escolhas erradas.

Scott parece não ter preocupações com o lugar do narrador: narra-se a partir de uma terceira pessoa flutuante, frenética, mas de fato tradicional. O foco narrativo acompanha, então, a inconstância das personalidades. Reformulando: se tomarmos o ponto inicial da criação literária como a escolha do narrador (como ensina Cristovão Tezza, no belíssimo “O espírito da prosa), Voláteis começa em suspenso.

A quantidade de diálogos também é bastante notável: muitas vezes, o narrador é quase desnecessário tamanha a agilidade (sem valoração aqui) do texto e das trocas entre personagens. A questão é se isso justifica (se de fato houver a necessidade de uma justificativa) o narrador inconstante.

Há uma vocação poética clara:

“O vapor do chuveiro toma o quarto, seu esfumaçado desarruma o branco do teto, afrouxando as pálpebras de Sabrina, até um flash asfixiado lhe cobrir os pensamentos e escurecer, ensejando entre as vozes embaralhadas do dia algo sobre as linhas da sua mão: um eco que se dilui no barulho do chuveiro, um fosso onde ela precipitará agradecida, no peso da quietude, na proteção fugaz do abandono”

O que não implica necessariamente um valor estético maior ou menor: a poesia pode ser caracterizada com a aproximação do narrador ao autor, portanto, a não necessidade da criação profunda de um narrador ficcional, fato que reforça o discutido acima.

Outro fato que chama atenção no livro são as descrições de roupas:

“Separa quatro dessas peças menos comuns, joga as demais contra a cabeceira. Estende a saia evasê (surpreende-se com a tonalidade laranja do tecido feltrado sobre o branco do lençol), faz o mesmo com a calça de lã cordada, com a blusa amarela de algodão crepom e o corpete vermelho de fibra sintética”

Essa é um exemplo, há outras situações semelhantes. É a tentativa simbólica (ou alegórica) do narrador de nos colocar em contato com aquele mundo que ao mesmo tempo que é tão cruel parece, para o leitor com mais condições, tão irreal.

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O narrador de Voláteis é o mesmo da maior parte dos contos de Ainda orangotangos: o mesmo narrador flutuante, ágil (sem valoração), de frases curtas e que não tem medo de nada, talvez porque não haja tempo para se ter medo, ou não se saiba ter medo: não sei. O que se percebe, novamente, são características semelhantes de narrativa, mas parece evidente que os contos de Ainda orangotangos sobressaem ao  romance Voláteis.

Isso porque a mensagem, antes difusa longamente num romance de duzentas páginas, aqui se concentra em 22 relatos curtos, que raramente ultrapassam as duas páginas, e, na edição da Bertrand Brasil (“revista”), dividem espaço com um prefácio elogioso de José Castello (além das recomendações de Marçal Aquino, Luiz Antonio de Assis Brasil, Charles Kiefer e orelha de Daniel Galera... o que só mostra que o background de Scott é sólido). Essa concentração é positiva para o efeito que o autor (narrador) busca.

O efeito do conto por excelência se faz presente: as narrativas esticam a realidade até o limite da loucura, do fantástico e da irrealidade (oras). O conto que dá título ao livro começa com uma frase que é um recado: “Trinta e quatro de agosto”. O recado também está no conto “Pusilânimes no café-da-manhã”:

“Vou pelo corredor tateando, ainda não me acostumei com o apartamento. Bater de asas, pássaros? Acendo a luz, a sala está infestada de morcegos. Voam em círculo causando uma mancha negra assustadora. Recuo, entro apressado na primeira porta, a da biblioteca. Tranco a porta, tento me recompor, é enorme o pavor que sinto de ratos e morcegos [...]. Alguém bate à porta. Três vezes. Sinto a pressão nas costas. Dou mais uma volta na fechadura e me afasto (troquei os segredos das portas ontem, como pode?).”

O chão que se pisa quando se lê os contos de Scott é o mesmo ar pelo qual os morcegos dentro do apartamento andam: eles são reais, afinal, mas são tão reais que não podem existir, não é possível que existam. A única saída possível: a biblioteca, a literatura. É lá que enfim está a realidade.

Há, é verdade, narradores diferentes nos contos. Em “Insônia postiça” há, por exemplo, um hábil narrador em segunda pessoa, como num diálogo, entremeado por parênteses que são justificativas do interlocutor: o conto seria brilhante se o desfecho não fosse fechadíssimo, intransponível. A violência deste relato, por sua vez, é justificada: há um sentido para a estilização da violência, um sentimento. Coisa que não parece acontecer em “Gentalha”, por exemplo (em que novamente a “realidade” se rompe no limite): “Tranquei-a no banheiro, saí degolando um por um. Os maiores eu esfaqueava mesmo”.

Mas tudo isso pode não fazer sentido nenhum, porque, como diz Daniel Galera na orelha desta edição da Bertrand, “podemos sair de Ainda orangotangos sem entender tudo, mas saímos impressionados”.

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Voláteis
Paulo Scott
208 páginas
Preço sugerido: R$36,00

Ainda orangotangos
Paulo Scott
84 páginas
Preço sugerido: R$29,00

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Habitante irreal (Alfaguara, 2011), o livro mais recente de Paulo Scott, foi recebido como o livro do ano em 2011, apesar de ter recebido uma ou outra crítica negativa, se essa valoração (positiva x negativa) ainda fizer sentido (o que creio não fazer).

E Ainda orangotangos virou filme:



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Se você gostou desses, provavelmente também vai gostar de:

A arte de produzir efeito sem causa
Lourenço Mutarelli
208 páginas
Preço sugerido: R$44,50

O belo romance de Mutarelli tem umas pitadas de loucura, morte e tudo o mais que você vê por aí.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Com a segunda leva de livros publicados, Tulipas Negras Editora se firma no cenário literário de Curitiba

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Selo da Tulipas Negras
A Tulipas Negras Editora foi criada em fevereiro de 2012, em Curitiba, por uma equipe cujo “porta-voz” é o jornalista e escritor Marcio Renato dos Santos. Em 2010, Marcio publicou o livro de contos Minda-Au, pela Record, sobre o qual fiz considerações amadoras aqui. E em 2011, publicou de forma independente Você tem à disposição todas as cores, mas pode escolher o azul, sob o formato que a Tulipas Negras utilizaria em seguida (livretos com apenas um conto, dobráveis). No início de 2012, a Tulipas publicou a primeira leva de sua produção: Marcio Renato dos Santos, Fábio Campana, Cristiano Castilho e Renan Machado.

"“A Tulipas Negras Editora estreia no mercado editorial com uma proposta ousada e original. A partir do slogan “Conto não vende? Ótimo. Só publicamos contos”", diz o release de lançamento da editora. A ideia é distribuir pequenos livretos, contendo um conto cada um, gratuitamente. “A Tulipas Negras Editora surgiu do sonho de uma empresária portuguesa de publicar apenas contos e, ao mesmo tempo, distribuir gratuitamente os livros”, afirma Marcio, no mesmo release, se referindo a sua principal patrocinadora, ainda não revelada, se é que existente. E completa: “Toda a equipe que participa do projeto vive em Curitiba. O importante é que todos foram remunerados, dos autores ao pessoal do design”.

A ideia é genial, e de fato já deixou uma marca no cenário literário da cidade: a intenção de revelar novas vozes, ao lado de algumas já estabelecidas, é talvez o que a iniciativa carrega de mais ousado. Ou será o fato de só publicar contos, ou ainda de distribuí-los gratuitamente?

Mas como este blog é um blog de crítica literária, vamos a ela, falar da segunda tiragem da editora, que no fim de junho publicou contos de quatro autores: Luci Collin, Guido Viaro, Izabel Campana e Andrey Michalzechen (as ilustrações são do artista Marciel Conrado).

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Luci Collin é uma voz estabelecida na literatura nacional: ficcionista, poeta, tradutora e professora universitária, autora de mais de 15 livros, integrou a antologia “Geração 90 – os trangressores”, organizada por Nelson de Oliveira, que também tem textos de Altair Martins, Ivana Arruda Leite, Joca Reiners Terron e Marcelino Freire, entre outros.

No conto publicado pela Tulipas Negras (Adoração à virgem), Luci faz um exercício de metaliteratura: transforma a Iracema de José de Alencar (“Aquela que foi um modelo, e cujo nome, sob forma de anagrama, serviu para batizar todo um novo continente (‘América’!)...”) em trisavó da narradora.

O conto, em forma de conferência, traz falas, atitudes e pensamentos (desnecessários no discurso da narrativa) da narradora, e tem um tom de pregação retórica (ou acadêmica) que chega a ser irritante em alguns pontos. Mas a irritação causada é em si uma provocação da autora-narradora e um ataque até sutil ao entronamento da literatura e dos... críticos literários.

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Andrey Michalzechen tem 20 anos e passou por um curso de jornalismo e de letras, não satisfeito por nenhum deles, abandonou tudo.

A estrutura acertada do conto Os relicários é o ponto alto da sua narrativa: ao ficcionalizar um personagem louco, ainda mais em primeira pessoa, Michalzechen cumpre a lição deixada por Faulkner e transforma em loucura a própria estrutura narrativa. Também destaca-se a boa utilização do título e a polvilhada de boas sacadas (“No final, você sabe que o seu médico é mais deprimido que você e que isso faz com que você não se sinta tão deprimido assim”).

O porém ao texto se faz no seguinte sentido: trata-se ainda de um autor que precisa dominar o seu próprio estilo, no lugar de ser dominado por ele. A utilização de frases curtas, uma característica marcante da prosa de Michalzechen, pode ser feita de maneira mais comedida, por exemplo, para justamente alcançar o objetivo a que se propõe.

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Guido Viaro é neto do famoso pintor italiano homônimo que se instalou em Curitiba nos anos 1920 e fez história por aqui: hoje, o neto administra o museu que leva o nome dos dois. Guido Viaro já publicou oito romances e dirigiu três filmes. Ele publicou pela Tulipas Negras o conto Árvore & Cavalo.

Há no conto de Viaro uma experiência formal ousada: uma tentativa de sublimação do idioma e da própria linguagem. No início da narrativa, sob forma de aula, um professor, no ano de 2124, propõe um exercício aos seus alunos: nomear uma imagem que representa um cavalo sobre uma árvore. Depois de uma primeira hesitação que serve como prenúncio (“Mas professor, se quisermos poderemos ficar horas... isso não terá mais fim...”), estabelece-se o diálogo com os alunos, que aos poucos se transforma em outra coisa, numa realização estrutural da própria proposta do autor.

Paro por aqui porque, segundo Viaro, “quanto às palavras, se você for um imbecil elas podem ser perigosas”.

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O conto de Izabel Campana, O destino do poeta, é uma releitura em prosa do poema Nuvens, de Fernando Pessoa (aqui não há nenhuma sacada crítica impressionante, o próprio narrador dá as pistas). A utilização estrutural do espaço (não há como ignorar o espaço formal num livro como esse, cujo formato é, simplesmente, diferente) é a mais acertada dos quatro: numa sucessão de parágrafos, por assim dizer, cada vez menores, a autora desenha no papel uma escada, pela qual o personagem parece descer até o buraco cavado por todos e no qual ele próprio também se afunda.

Afora isso, o tom marcadamente confessional do narrador e a fidelidade com o poema incomodam um pouco, apesar de uma prerrogativa interessante que o próprio narrador se coloca: “Meu azar foi toda a sorte que tive. Sempre tive tudo o que quis. Família, amigos, amor. Tudo em abundância, sempre. Dificuldade nenhuma a frente”. Manoel Carlos Karam escreveu um livro inteiro sobre isso, e disse: “Sabe qual é o nosso mal? Frustrações medíocres. Não temos nenhuma frustração que valha alguma coisa e nos redima". O parâmetro não é justo, mas todos escrevem depois que outros escreveram, e escrever em Curitiba é sempre escrever em Curitiba.

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A autofagia curitibana, mito alimentado nos anos 1980 e 1990 por gente como Paulo Leminski e Jamil Snege (autor pelo qual eu nutro verdadeira veneração), parece ser só qualquer coisa do passado, se é que  ela algum dia existiu. Apesar de tudo (e dentro deste tudo o fato de o dinheiro e as grandes editoras estarem “longe” daqui), a literatura de ficção produzida em Curitiba nos últimos 20 anos é consistente e muito bela em vários momentos. A iniciativa de Marcio Renato e dos outros envolvidos na Tulipas Negras Editora merece todos os elogios por tentar movimentar alguma coisa nessa história.

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Se você gostou desses, provavelmente também vai gostar de:

O macaco ornamental
Luís Henrique Pellanda
192 Páginas
Preço sugerido: R$ 35,00

A excelente estreia na ficção do escritor curitibano Luís Henrique Pellanda confirma que a Curitiba literária tem muito a oferecer.