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domingo, 17 de fevereiro de 2013

Um crime delicado, Sérgio Sant'Anna

Ler esse livro do escritor carioca Sérgio Sant’Anna (1941) me lembrou o tempo todo os escritos de Enrique Vila-Matas, o que é engraçado porque é difícil encontrar um ponto de encontro entre os dois fora dessa impressão literária. Talvez um deles seja a admiração que Vila-Matas manifesta por César Aira, tradutor de Sant’Anna na Argentina. Tudo é coincidência.

A questão é que Um crime delicado (1997, Companhia das Letras, vencedor do Jabuti de 98) é um romance, em formato de desabafo, escrito por um crítico de teatro, encenado como uma peça, trabalhado como uma crítica. 

Antonio Martins é um crítico de teatro que se envolve em um processo criminal após o seu envolvimento com Ines, uma mulher manca que causa nele uma profunda impressão. O seu desabafo, que é então a narrativa, é a sua versão dos fatos.

Ao colocar o narrador no papel do crítico, Sant’Anna utiliza uma fórmula, um vício ao contrário, e cria um romance em que o crítico, no lugar de avaliar, é avaliado.

E esse crítico é assim: ele usa um estilo envelhecido, elegante é verdade, mas na maior parte do tempo pomposo, como pomposa parece ser a sua própria vida.

“Sobre uma leve camisa social listrada, de mangas compridas, que arregacei um pouco, eu vestira um colete desabotoado. Uma peça que, no meu entender, antes de ser anacrônica, era intemporal, concedendo-me ao mesmo tempo um toque clássico e moderno, de elegância discreta e jovialidade, esta última reforçada pela calça jeans que eu usava como todo mundo”.

Que passagem primorosa de descrição de um personagem! Pouca coisa precisa ser dita: alguém que precisa loucamente de um grau de aprovação qualquer, que está numa breve crise de identidade, que precisa se afirmar como elegante porém jovial. Ora, não parece a crítica literária atual (lembrando que o romance é de 1997)?

Assistindo a uma participação do professor João Cezar de Castro Rocha num encontro do Itaú Cultural, em novembro passado, vemos o crítico defender com veemência a “secundidade” da própria crítica. Ou seja, a crítica tem que assumir o seu papel secundário para então renovar seu discurso e retomar seu papel relevante no sistema cultural.

Sérgio Sant'Anna
Divulgação Companhia
das Letras
Mas parece que a crítica (com honrosas exceções como a de João Cezar), assim como o narrador de Um crime delicado (Antônio Martins - o sobrenome de um dos maiores críticos literários do século XX não é, apesar de comum, coincidência), nada contra uma corrente invisível. O narrador do romance não escreve o seu relato para se desculpar, para pôr a prova algum erro, não: ele escreve na defensiva.

Há, igualmente, essa corrente invisível contra qual a crítica tem que nadar. Há um não entedimento da atividade crítica generalizado: acadêmicos acham jornalistas superficiais, jornalistas acham acadêmicos entediantes, e numa dessas a relevância vai por água abaixo. Claro que há exceções, e são elas que nadam contra a corrente, essa talvez real.

Sobre toda essa questão, o Vila-Matas tem um trecho bom do Ar de Dylan:

“[…] admirava talvez falsamente porque — tendo começado a publicar nos anos que a crítica literária podia decidir o destino de um livro — adquirira o costume de se dar bem com aqueles resenhadores que revelavam um perigoso ânimo depredador, pois não parecia recomendável cruzar os braços diante deles e ficar inteiramente à mercê de sua sede de mal ou de sua vontade de invocar sempre aquele escritor fantasma que para eles seria o escritor perfeito: um narrador que eles pareciam conhecer a fundo porque era eles mesmos […]”

De fato, Enrique, era eles mesmos.

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Um crime delicado
Sérgio Sant'Anna
136 páginas
Preço sugerido: R$34,00

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O livro foi adaptado para o cinema por Beto Brant. Veja o trailer:

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Ar de Dylan
Enrique Vila-Matas
Trad.: José Rubens Siqueira
320 páginas
Preço sugerido: R$59,00

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Debate em Curitiba reuniu dois renomados críticos literários brasileiros

Ataque ao politicamente correto e perspectivas distintas marcaram o encontro entre João Cezar de Castro Rocha e Alcir Pécora na Semana Literária do SESC Paraná

Foto: Shigueo Murakami / SESC-PR (Clique para ampliar)
Quarta-feira, 19h30 na Praça Santos Andrade, em Curitiba: mais de 100 pessoas se reuniram para ouvir João Cezar de Castro Rocha e Alcir Pécora sobre crítica literária. A mesa aconteceu em formato de seminário, ou seja, cada convidado tinha aproximadamente vinte minutos para expor suas ideias sobre um possível panorama da crítica literária contemporânea no Brasil. O debate foi mediado pelo jornalista Yuri Al’Hanati.

Após os seminários (veja mais abaixo), os convidados discutiram rapidamente algumas questões, entre elas o “politicamente correto”.

“A questão do Monteiro Lobato no STF abrirá jurisprudência: com ela, poderemos abolir qualquer literatura das escolas”, ironizou João Cezar. “A questão do politicamente correto é muito preocupante e não pode ser tratada como caricatura”. “Não pode acontecer uma transposição ingênua, do politicamente correto, do espaço público (onde ele deve existir) para a universidade”, enfatizou. 

“Isso é um desastre, porque a literatura, e a universidade também, são espaços em que se podem exercer pensamentos e linguagens de risco, e essa transposição leva a uma receita prêt-à-porter para a leitura de textos”. E concluiu: “Deveríamos ter mais coragem para pelo menos levantar estas questões”.

Alcir Pécora (Foto: Shigueo Murakami)
Pécora: distinção entre dois tipos de crítica
“Pensei em dizer coisas sobre a crítica contemporânea de uma maneira geral, não especificamente no Brasil, mas que podem balizar problemas e apontar o que se pode fazer”, começou Pécora, conhecido também por uma relativa antipatia com o cenário da literatura brasileira atual. Ele fez uma distinção básica entre dois tipos de crítica literária: uma mais comum, em que o crítico se coloca diante de um livro e o critica basicamente a partir do que sentiu; e outra na qual o crítico vai além e tenta formular uma hipótese para aquele livro, que busca o “princípio organizativo” da obra.

“A primeira acontece em todos os lugares, também no Brasil, e tanto nos jornais quanto nas universidades”, disse. “Não há nada de errado, mas é um trabalho crítico mais banal, mais comezinho, que pode ser feito de forma mais ou menos convincente dependendo do crítico”. Pécora completou que essa espécie de crítica é  útil

Sobre a segunda orientação, Pécora se mostrou mais entusiasmado. “Aposto no crítico que vai muito além do próprio gosto, que vai buscar a consistência do livro e o âmago fundamental da obra”, disse. “Ele tenta uma ética do objeto, o que não significa submissão: sim ter uma hipótese forte para confrontar o decoro de um objeto com os outros objetos”. Em seguida, o crítico destacou que nada na cultura (e na literatura) existe só: há sempre um confronto fundamental de objetos. 

“Outra coisa de que não gosto é uma tendência que existe de as pessoas desqualificarem os atuais estudos universitários de literatura sobre outras épocas como ‘perda de tempo’”, criticou. “É muito importante esse distanciamento, a postura crítica se adquire através da distância: se formos nos curvar a cada objeto novo, podemos perder a noção de que o campo é constituído há muito mais tempo, e isso é um erro”. E concluiu: “Não se trata de negar o presente, mas sim perceber que as obras da cultura estão tão vivas e são tão determinantes quanto os objetos novos”.

Outro fator que Pécora citou, em relação especificamente aos jornais, foi a questão do espaço reduzido para qualquer produção. “Hoje em dia temos que produzir para jornal de acordo com o desenho do que não foi vendido na página”, disse, referindo-se à publicidade nos veículos. “Ainda os jornais dão espaço a algumas poucas editoras, e o que passamos a entender é apenas um fiapo daquilo que é preciso para se formar um lugar consistente de crítica e de literatura”, ressaltou. “Não é o caso para um desânimo coletivo, mas sim de buscar um enfrentamento moral dessa questão”.

João Cezar de Castro Rocha
Foto: Shigueo Murakami
Cátedra x Rodapé
João Cezar de Castro Rocha traçou um panorama da crítica literária no Brasil no séc. XX (resgatando suas ideias publicadas no livro Crítica literária: em busca do tempo perdido?, publicado pela Argos em 2011). Ele propôs três situações e as desenvolveu: (1) crítico como juiz é uma ideia superada, embora a crítica seja mais necessária do que jamais foi; (2) a distinção entre crítica de rodapé (dos jornais) e crítica universitária foi estratégica nos anos 1940 e 50 no Brasil, mas a partir dos anos 80 passou a viver uma crise de reinvenção; e (3) a reinvenção da crítica nas condições contemporâneas exige a superação do cisma entre aquelas duas formas de crítica.

“Em virtude do aumento exponencial de informações, há a necessidade da figura crítica, mas é preciso ter cuidado: aquela importação acrítica do ‘politicamente correto’ norte americano ameaça se transformar numa corrente, quando na verdade é um fascismo light, uma postura autoritária”, disse. “A ideia do crítico como juiz também esteve muito ligada à Galáxia de Gutenberg: hoje em dia, já não há mais controle exclusivo dos meios de divulgação”.

Em relação ao segundo ponto, João Cezar relacionou a criação dos cursos de Letras às vanguardas modernistas e destacou o surgimento do escritor-crítico (que faz certa autocrítica em sua própria obra). “No Brasil, as faculdades de Letras se uniram ao modernismo para começar a ter meios de buscar aquela ética do objeto a que o Pécora se referiu”, disse. 

“A crítica universitária herdou uma tradição fortíssima dos jornais e revistas: métodos modernos de estudos literários internacionais, padrão de alto nível nos textos, a união entre tradição humanista e técnica, tudo isso estava presente nas críticas de rodapés dos anos 1930 e 1940”.

Para o crítico, então, é preciso superar esse cisma (“que teve um caráter estratégico de afirmação da Universidade nos anos 40 e 50”), para tirar a crítica universitária das suas características atuais: “uma reduplicação de conhecimento, confusão do saber, e o mais importante: nos últimos 10 anos a crítica universitária não tem dado contribuição real para a renovação da própria crítica”.

“Tem faltado aos professores universitários desejo de se arriscar e vontade dizer coisas que precisam ser ditas”, lamentou. 

Como proposta, João Cezar formula que se deve criar um novo método e uma linguagem própria, um equilíbrio, para a nova crítica literária. “A teoria universitária só vale quando posta em resistência com o texto, que não pode ser julgado apenas por um teoria prévia a ele: há que se buscar a vitalidade daquela crítica de rodapé que se fazia muito bem no Brasil na primeira metade do século XX”, resumiu.