quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Enquanto água, Altair Martins


No mais recente Paiol Literário, aqui em Curitiba, Altair Martins (1975) disse: “O narrador em terceira é perigosíssimo hoje. Porque é a pretensa verdade. É aquele narrador que pára e diz: “Fulano nascera…”. Não dá mais. Ninguém mais acredita nesse narrador que quer te convencer: “Eu tenho uma bagagem histórica sobre o personagem e agora vou mostrá-la”.”

Martins, que é doutorando em Letras pela UFRGS, já tem publicado quatro livros (A parede no escuro, romance de 2009, foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria autor estreante). O mais recente, a coletânea de contos Enquanto água (Record, 2011), é a reafirmação da frase do primeiro parágrafo. Em uma sucessão de contos, na maioria breves, Martins constrói uma obra cujo narrador está em constante crise: isso sem deixar de lado um grande talento para simplesmente contar uma história.

Os 18 contos — alguns deles já publicados em revistas ou outras antologias  são divididos em quatro partes: “Chuva na cara”, “Depois da chuva”, “Garoa” e “Água com gás”, e as histórias encontram uma convergência dentro de cada divisão. Os contos da primeira parte são, quase todos, brilhantes. Em “dois afogados”, o narrador utiliza recursos ousados (como placas de trânsito e uma alternância de vozes) para criar uma história que vai muito além da própria narrativa. Lembrei, lendo, de uma passagem de um livro de Luiz Felipe Leprevost que se encaixa magicamente aqui: “Segui placas de contramão”.

“homens de verdade” insere o tema da homossexualidade no livro narrando a história de jovens (crianças) cruéis. Um dos recursos utilizados nesses contos é o final arrebatador: quase sempre na última linha. Isso é muito difícil de ser bem realizado, e lembra, por exemplo, Cortazar. 

Altair Martins
(Divulgação Record)
A segunda parte, com apenas um conto, simboliza uma ficção um pouco diferente. Se é comum vermos uma linhagem que utiliza a própria literatura como artifício (da qual sou fã, assim como Altair Martins, pelo que parece; cito Enrique Vila-Matas como exemplo), Martins utiliza o conhecimento teórico da área de humanas para produzir um Mal de Montano às avessas: o personagem parece enlouquecido pelo próprio excesso de conhecimento (aparecem teorias de Peirce, Langmuir, Lévi-Strauss, Lacan, Borges, e outros).

A terceira sessão, “garoa”, guarda eco exatamente de Borges: uma metafísica aplicada que pretende criar um mundo particular, com elementos que pedem uma segunda olhada, e que te faz dizer: “é isso mesmo?”. Por exemplo, no conto “quase oceano quase vômito”:

“Aquele rio não aceitaria assim tão fácil. Dominava um continente e um pátio no oceano. E quando amanheceu completamente água, e nu, como se nascendo, não houve quem não se espantasse. Era o primeiro dos tantos rios que, sem explicação, voltavam à limpidez original. Eram rios tão puros que os leitos podiam ser lidos”.

A quarta sessão, “Água com gás”, mostra todo o talento do escritor ao praticamente fazer um resumo do livro: histórias interessantes com estruturas bem pensadas e nunca tradicionais. No conto “o mar, no living” (título de um poema de Carlos Drummond de Andrade, que dá a seguinte epígrafe: “o mar tudo recobre / sem nada asfixiar”), o próprio mar, isto é, a água invade o ambiente de uma festa de aniversário infantil:

“E então, mal a vela se acende, o mar entra no living, atravessando os vidros e ocupando, com azul e fauna, os espaços da fest. E posto seja mar e se comunique com o oceano, ele surpreende em ser tudo menos violento, e não apaga vela ou palma. Apenas que a festa segue, percebida pelos sentidos abafados. É a luz de uma vela sob o mar. É um parabéns afogado. São raízes da fumaça dentro d’água”.

É exatamente a água o ponto chave desse livro (claro): a água, que às vezes aparece apenas como rio, mar ou chuva, mas muitas vezes como metáfora de sentimentos tão humanos como a esperança, a saudade, o arrependimento, a traição e, em última instância, a morte.

*

Outro aspecto importante na obra de Martins, segundo o próprio, é o engajamento. 

[A literatura] deve mostrar que existe uma pretensão de realidade, muito falsa, produzida às vezes pela mídia. Existe um Brasil da televisão e existe o Brasil real. Então, a função da literatura é esta: de alguma maneira corroer a verdade que pretende ser verdadeira. Por isso o engajamento. O escritor não pode deixar de mostrar que essa realidade é falsa e mostrar uma outra realidade possível — que, ao meu ver, só a literatura vai mostrar.

Quando uma mulher enfrenta dificuldades com o marido alcoólatra e tenta fugir com o pastor da igreja; quando um homem muito religioso, esmagado por uma culpa muito grande, se vê incumbido de cuidar de duas filhas e percebe que não é capaz; quando uma mera brincadeira doméstica vira tragédia. Pequenos exemplos do engajamento de Martins: sempre recoberto por uma camada de excelente prosa ficcional, percebe-se um texto preocupado com o lugar que a própria literatura pode ocupar em uma sociedade de não-leitores.

*

Trecho do conto “unha e carne”, que narra a relação de Irene (mãe), Luciana (filha) e Jorge (padrasto):

“Luciana pediu café. Antes que Irene se rendesse e lhe pedisse para não acreditar nas coisas que ouvia, a filha arranjou modos de olhar o relógio, inquietar os cabelos, atirar os olhos aos cantos e dizer que tinha de ir, senão chegaria atrasada ao trabalho. Irene, ao portão, sentia então que mais coisas ficariam à espera da água. A filha ainda disse Não precisa ir se não quiser. Mas Irene sabia, desde que Luciana fora morar sozinha, que aquilo tudo entre a filha e Jorge era como a louça. Não precisava lavar se não quisesse.”

*
Enquanto água
Altair Martins
160 páginas
Preço sugerido: R$27,90

*
No vídeo abaixo, Reginaldo Pujol Filho e Altair Martins fazem uma divertida leitura do conto "Quero ser Altair Martins", do livro Quero ser Reginaldo Pujol Filho, já resenhado por aqui.



*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Suicídios exemplares
Enrique Vila-Matas
Tradução: Carla Branco
Cosac Naify (2011)
208 páginas
Preço sugerido: R$49,00

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A máquina de madeira, Miguel Sanches Neto


O Brasil existe? Essa parece ser a pergunta que ocupa A máquina de madeira (Companhia das Letras, 2012), romance mais recente de Miguel Sanches Neto (1965). Como o próprio diz, esse é um romance de um país antigo e atual. É verdade.

A classificação de romance histórico é inevitável: o livro conta a história de Francisco João de Azevedo (1814-1880), padre e inventor brasileiro que teria desenvolvido a primeira máquina de escrever do mundo (pelo menos, capaz de ser produzida em escala industrial). Francisco existiu de fato, assim como sua invenção e como boa parte da história desse livro. Isso é importante na medida em que reconhecemos o extenso trabalho de pesquisa do autor; desimportante se alguém quiser considerar onde começa e onde termina a ficção. Porque A máquina de madeira é um romance histórico, ambientado especialmente no Rio de Janeiro (mas também no nordeste), que conta a história de um brasileiro empreendedor habitante de um país, ele sim, de madeira.

Porque é a essa conclusão que se chega durante a leitura do romance: a máquina de madeira é o próprio Brasil. O século XIX brasileiro é no mínimo conturbado, e talvez toda a movimentação política interna do século tenha fechado os olhos do país (ou de seus dirigentes mais importantes) para a questão do progresso material (sempre duvidosa, mas, naquela altura, obviamente necessária). 

“Não há indústria mais necessária para o país, pensava dom Pedro, do que a de beneficiamento de madeira. Nossas madeiras, tanto pela variedade quanto pela qualidade, se sobrepõem às de outros países. Se nosso próprio nome vem de uma madeira, são as árvores o que melhor nos representam”.

Não houve uma política marcante de desenvolvimento econômico sólido. Antes, a importação em massa de (falo com base no romance) ferro. Porque, aparentemente, era isso que era necessário para o país crescer (ser um país de verdade): ferro. Poderíamos resumir assim: o romance trata da história do padre Francisco buscando alguém que possa fundir a sua máquina de madeira. Ou: o romance trata de uma metonímia da história do Brasil buscando ferro em outros lugares para fundamentar a sua própria unidade como país. Ambas as descrições estariam corretas.

Miguel Sanches Neto
(Divulgação Companhia das Letras)
O romance é dividido em duas partes maiores, “Londres” e “Nova York”; ambas fugas fracassadas para as duas cidades, que supostamente acompanhariam a mente avançada de um brasileiro com olhos para o futuro. O narrador parece ser sempre aquela terceira pessoa distante, do próprio séc. XIX. Isso muda quando Sanches Neto insere no romance variações estruturais (ao usar diferenças tipográficas, como o itálico, ou formatações de notícias de jornal, por exemplo) que criam a dinâmica na leitura.

O trabalho da própria linguagem também aparece: especialmente por sutis escolhas de vocabulário, um português não muito diferente, mas que remete ao séc. XIX, é usado para narrar a história (o autor falou sobre isso numa entrevista, clique aqui; ele disse que se apropriou da linguagem de diários e anotações pessoais da época para criar um idioma mais próximo, mas não oficialiesco, alencariano).

Em outra interpretação da história, também podemos ressaltar o papel secundário que a máquina ocupa, paradoxalmente. Depois de sua invenção, é urgente encontrar para ela alguma utilidade, algo que a justifique, que a exima da culpa de ter nascido para escrever num país não desenvolvido. Gravar sermões nas igrejas e depois as discussões na Assembleia Estadual de Pernambuco não foram suficientes para reverter o papel secundário da escrita na própria história do Brasil.

Talvez, agora percebemos, essa luta já seja ultrapassada. Talvez a necessidade seja, atualmente, reconhecer esse próprio caráter secundário da escritura, e com ele fazer alguma coisa. Trabalhamos.


*
A máquina de madeira
Miguel Sanches Neto
248 páginas
Preço sugerido: R$36,00

*
“Se temos madeira, também temos cupim, muito cupim, com uma voracidade que só os insetos tropicais sabem ter, e também com uma assustadora capacidade de reprodução. [...]Nos trópicos, tudo estragava muito mais rápido. Tudo envelhecia de maneira muito mais veloz. Ele mesmo, que não tinha ainda quarenta anos, já se sentia um ancião. Nem se fôssemos feitos de ferro suportaríamos a vida aqui, e no entanto somos feitos de madeira”.


*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Viva o povo brasileiro
João Ubaldo Ribeiro
640 páginas
Preço sugerido: R$69,90

Obrigatório.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

E se contorce igual a um dragãozinho ferido, Luiz Felipe Leprevost

Como foi dito por aqui há algum tempo, achar o equilíbrio numa narrativa ao misturá-la com poesia pode ser um processo arriscado: cair na pieguice e usar imagens desnecessárias é um risco constante, e saber se esse risco é necessário também é outra questão. Porém, quando o escritor consegue juntar seu talento poético e metafórico numa narrativa prosaica, o resultado é sempre recompensador. Essa proposta foi bem cumprida pelo escritor curitibano Luiz Felipe Leprevost no seu livro mais recente, E se contorce igual a um dragãozinho ferido (Ed. Arte e Letra, 2011).

Leprevost tem trânsito: em Curitiba e no Rio de Janeiro, ele compôs uma obra artística que extrapola os limites da literatura (são pelo menos três livros de contos, um de poesia, e uma novela), alcança a dramaturgia e, especialmente, a música. A ponto de ele chegar a declarar em redes sociais que “não sabe mais o que é literatura”. A parte a brincadeira, de fato nos últimos meses ele se dedicou bastante à sua carreira musical, da qual já saíram músicas muito bonitas.

Esse talento poético para a composição inevitavelmente seria refletido na sua escritura: E se contorce... encontra paralelo temático, por exemplo, na seguinte canção (que nasceu de um poema seu; é ele quem canta a versão abaixo):



Segundo o próprio afirmou na última edição do Festival Nacional do Conto, ele primeiro encontrou em si mesmo uma voz poética, para em seguida encontrar a narrativa dentro da própria poesia. Isso explica o frequente uso de imagens metafóricas, característica desse livro (e de toda a prosa do autor), narrado pelo próprio personagem, em duas estruturas: uma delas em Curitiba, supostamente no presente, a outra no Rio, “cinco anos” atrás.

Um dia, quando vi, meus braços tinham sido transformados em tentáculos de polvo, querendo abraçar sua ausência. Lembrei por tanto tempo a pele e a bocarra dela como as de um crocodilo que ficava ao meu lado um pouco e sumia. Minhas mãos em pinças, patolas de caranguejo, não a impediam de partir.
    Nossa ternura era feita de garras, não de dedos. De chicotes, não línguas. Camisas de força, não abraços. Chave e fechadura.
    Mas deixa eu contar do começo.
Luiz Felipe Leprevost
Foto: Marco Novack
Descobrir quem é esse personagem talvez seja uma investigação interessante. O suposto publicitário curitibano vai tentar a sorte no Rio de Janeiro, no mundo empresarial da propaganda, e acaba vivendo uma vida provisória em quartos alugados, poucos amigos e, claro, o fio condutor da história, um amor.

Mas o que descobrimos ao ler essa narrativa é que o narrador é, na verdade, um poeta frustrado. Ele diz algumas vezes que escreve uns poemas, mas o maior poema que ele escreve é na verdade aquele que estamos lendo. E isso é tudo.

“Ela me perturbava. Eu que tinha colecionado medalhas de atleta e amores doídos ao longo da vida, que no passado aparei os cabelos da chuva, queria agora protagonizar o filme de açúcar cristalizado que em sua mente trepidava.”

Sobre a história (e não se preocupe, você descobre isso logo no início), o amor é na verdade um desamor, um não-amor, um processo lento e extremamente doloroso de um amor acabando (“ternura feita de garras, não de dedos”). O amor acaba em todos os lugares, como disse Paulo Mendes Campos, e esse livro aqui é um tratado sobre o finalmente do amor. A distância entre o Rio de Janeiro e Curitiba (simbolicamente, a distância entre o casal de personagens) também é importante aqui: transformá-la em apenas uma linha de texto é o que tenta fazer (e consegue) o narrador.

E é esse personagem que passa pelo processo de desconstrução o grande trunfo do livro. Descobrir e entender por que isso acontece é a tarefa do leitor.

*
E se contorce igual a um dragãozinho ferido
Luiz Felipe Leprevost
Arte e Letra (2011)
119 páginas
Preço sugerido: R$25,00

*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Um erro emocional
Cristovão Tezza
Record (2010)
192 páginas
Preço sugerido: R$34,90

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O filho de mil homens, Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe (assim mesmo, com maiúsculas) levou o prêmio Portugal Telecom 2012 por a máquina de fazer espanhóis (Cosac Naify, 2011), merecidíssimo. O autor, angolano que vive em Portugal desde a infância, esteve no Brasil na FLIP 2011, fez tanto sucesso que acabou sendo o autor mais vendido daquela edição da Festa (justamente, o máquina..., que, naquela época, junto com o remorso de baltazar serapião, este publicado pela Editora 34, eram os seus únicos livros publicados por aqui).

Ele fez sucesso pela simpatia (hoje em dia, facilitador para qualquer artista), mas principalmente por um texto, uma carta. Se esse texto tiver sido uma jogada de marketing, foi, sem dúvida, a mais emocionante de todas. Mas acredito que não. Você mesmo pode decidir lendo a carta aqui, ou, principalmente, assistindo ao vídeo abaixo (são sete minutos, mas você não vai se arrepender, eu garanto):


Seu romance mais recente, O filho de mil homens (Cosac Naify, 2012), pega o gancho daquilo que Mãe falou ali no final, de que tem quarenta anos e não tem filhos. Os primeiros parágrafos dão conta do que eu preciso falar sobre a história:

“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo.
     Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.
     Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade no espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía.”

A partir daí, Valter Hugo Mãe escreve um romance emocionante que, à semelhança das telenovelas brasileiras, se divide em histórias de personagens diferentes aparentemente sem conexão. O que aparece diante do decorrer do livro é um narrador seguro, que costura diferentes narrativas com tranquilidade (esse é o seu quinto romance; ele já publicou mais de quinze livros de poesia, nenhum deles no Brasil, infelizmente, porque o seu pendor para a poesia é muito evidente nos romances; chega a ser quase constrangedor).

Foto: Vítor Quelhas
Quem utiliza essa poesia na narração é um narrador que parece ser uma memória coletiva, memória esta que se veste exatamente de poesia. A linguagem criada por Mãe, também bastante presente nos outros livros, cria, por sua vez, um mundo muito particular. Um meio do caminho entre passado e presente, um não-lugar no espaço. O ficcionista atinge seu objetivo máximo, ao que parece, quando consegue equilibrar todos esses fatores; não dá pra exigir mais nada.

Entre alguns temas que passam pelo romance, há dois que se destacam: (1) a questão do “ser completo” e (2) a homossexualidade.

1. Desde os primeiros parágrafos essa busca está presente: para Crisóstomo (e para Mãe também, isso é muito claro) é urgente buscar algo que lhe complete a vida. A presença da morte é também muito forte nos livros, o que faz, ainda mais, essa busca pela totalidade da vida ser urgente. Às vezes, ainda, para os personagens deste livro, não basta ser completo, ser inteiro: há que se ser o dobro.

2. O tratamento que os personagens do romance (não necessariamente os principais, mas especialmente os vizinhos, os conhecidos) dispensam ao personagem homossexual (o narrador o chama, inicialmente, de “o homem maricas”, e depois descobre-se o seu nome, Antonino; essa mudança faz parte do próprio processo de incorporação do personagem), esse tratamento dá algumas dicas de que o romance está mais no passado do que no presente (embora, infeliz e tragicamente, alguns viventes ainda tenham comportamentos semelhantes). Falo da forma agressiva e preconceituosa que os personagens tratam Antonino especialmente na primeira metade do livro, ao considerá-lo, em uma só palavra, uma aberração. Além disso, a relação da mãe, que é uma das personagens antiquadas, digamos, com o filho é, inicialmente pelo menos, kafkiana. Esse relacionamento parece, em algum nível, com o relacionamento da mãe com Gregor Samsa.

De qualquer forma, o tratamento que Valter Hugo Mãe dá a esse tema insere o romance, de uma vez por todas, no mundo contemporâneo (não vou entregar nada, mas esse tratamento passa longe de lugares comuns politicamente corretos, igualmente).

Pegando do início, sabemos que esse é um livro sobre família. Mas não se engane. Como diz Silviano Santiago na orelha do livro, não há nada de tradicional aqui. Não há nada de comum na obra de Valter Hugo Mãe.

*
O filho de mil homens
Valter Hugo Mãe
256 páginas
Preço sugerido: R$39,00

*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Está ficando tarde demais
Antonio Tabbucchi
Tradução: Ana Lúcia Ramos Belardinelli
Rocco (2004)
196 páginas
Preço sugerido: R$30,50

Tabbucchi é outro especialista em criação de não-lugares; esse belíssimo romance epistolar também pode ser considerado como um tratado sobre a saudade.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, David Foster Wallace

Desvincular a experiência pós-moderna da narrativa de David Foster Wallace (em algum estágio da sua obra, pelo menos) parece impossível. Ler alguns dos contos de Brief interviews with hideous men (lançado no Brasil pela Companhia das Letras; me refiro ao original neste texto porque só tive acesso a ele) é missão de especialista: Datum centurio por exemplo, é praticamente impenetrável.

Mas, após a leitura de um artigo do professor Caetano Galindo¹ (especialista na obra de DFW), podemos dizer que Brief interviews... é um momento de transição na obra do escritor americano. Uma transição da experiência puramente pós-moderna de “narratividade” (que redundou nas suas produções iniciais) e a fase final do trabalho de Wallace, que remete, segundo Galindo, a uma negação de um sistema irônico inerente à cultura norteamericana no final do século XX.

Esse sistema é para Wallace (de acordo com Galindo) uma postura ética que limita as possibilidades da escrita de ficção assim como as suas próprias contestações. Simplificando, é uma luta contra esse conformismo, contra essa aceitação passiva de fatores culturais que vai, enfim, “mover o futuro projeto ficcional de Wallace”.

No artigo, Galindo reúne e faz uma reflexão sobre as próprias reflexões de Wallace em um ensaio entitulado E unibus pluram, que por alguma razão ficou fora de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Companhia das Letras, 2012, trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari). Naquele ensaio, Wallace fala da influência da TV no imaginário cultural norteamericano, especialmente do fator irônico autoconsciente que a TV impõe, fator também exercitado pela ficção escrita. Segundo Galindo,

“E o que David Foster Wallace parece ter vontade de "reabilitar" é precisamente uma literatura triste, emocional, sincera em sua relação ficcional com o leitor. Evitando os cutucões do cotovelo do ironista e as artimanhas dos narradores indignos de confiança, especialmente dedicados a tentar passar a perna nesse leitor. Urn leitor que tem como principal finalidade se  juntar ao sorriso acre do autor que de tudo descrê e que apenas reafirma esse fato.”

(Ilustração Brian Taylor,
Los Angeles Times
)
Em Brief interviews... essa “vontade” se faz bem clara em alguns contos (apesar do contínuo interesse pela estrutura em si da narrativa, característica tipicamente pós-moderna): o fato de DFW investir pesado em descrições às vezes intermináveis, e em notas de rodapé enormes, parece ter o intuito de justamente aparar qualquer ponta de ironia que tenha escapado ao texto. No mínimo, aquela ironia autoconsciente, propositada. Um bom exemplo é o célebre “The depressed person”:

“The word ‘pathetic’, the therapist candidly shared, often felt to her like a defense-mechanism the depressed person used to protect herself against a listener’s possible negative judgements by making it clear that the depressed person was already judging herself far more severely than any listener could possibly have the heart to. The therapist was careful to point out that she was not judging or critiquing or rejecting the depressed person’s use of ‘pathetic’ but was merely trying to openly and honestly share the feelings which its use brought up for her in the context of their relantionship.”

Esse tipo de descrição de situações e sentimentos e trocas de experiências é marca fundamental da prosa de Wallace nesses dois livros em análise aqui. Na não-ficção, essa investigação parece levar alguma vantagem simplesmente pelo fato de ser, em alguma medida, mais engraçada, mais envolvente (sem nenhum juízo de valor aqui).

¹GALINDO, C.. Um tipo americano de tristeza: o próximo romance de David Foster Wallace e os próximos romances americanos DOI: 10.5007/2176-8552(0.7.2008)(125-138). outra travessia, UFSC , 7, 2009. Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/11984>. Acesso em: 01 Dez. 2012.

*

David Foster Wallace
(Foto: Flavorwire)
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo é a primeira coletânea de não-ficção de David Foster Wallace lançada no Brasil, e o “Ensaios” estampado na capa é mais um facilitador editorial do que um indicador correto (fato corrigido pelo tradutor no prefácio). Pelo menos três dos seis textos totais são claramente reportagens: sim, com esse estilo e essa proposta estética muito pessoais, e com elementos que extravazam o jornalismo, mas ainda reportagens (me refiro, é claro, a Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer e Pense na lagosta).

Um dos outros três está num espaço entre a reportagem e a pura reflexão (Federer como experiência religiosa, que, justamente por causa daquele estilo de descrições praticamente obsessivo, pode ser uma experiência realmente traumática para quem não tem um mínimo afeto pelo tênis como esporte). Uma palestra emocionante sobre o humor em Kafka e um discurso de paraninfo (que, aparente e superficialmente, esbarra num discurso de auto-ajuda com alto grau de ambição estética) completam a coleção.

No prefácio de Daniel Galera, ele explica por que E unibus pluram e outros ensaios importantes ficaram de fora: pela proposta editorial de trazer textos introdutórios da não-ficção de Wallace. Mas o ponto principal desse texto do Galera, com o qual eu concordo integralmente, é que a não-ficção de Wallace é mais acessível do que os seus contos, por exemplo, de Brief interviews... Mas não se engane: a mesma verborragia, o sarcasmo contumaz e as notas de rodapé enormes, fatores que entre outros caracterizam a voz narrativa de DFW estão presentes (e muito).

“Aqui está em jogo, acredito, a sutil vergonha generalizada que acompanha a autoindulgência, a necessidade de explicar para quem quiser ouvir por que a autoindulgência na verdade não é autoindulgência. Tipo: nunca vou receber uma massagem apenas para receber uma massagem, vou porque meu velho problema nas costas causado por uma lesão esportiva está me matando e mais ou menos me forçando a receber uma massagem; ou tipo: eu nunca apenas “quero” um cigarro, eu sempre “preciso” de um cigarro.”

Fatores, exatamente, que fazem a leitura da não-ficção de Wallace ser uma leitura memorável.

*
Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo
David Foster Wallace
Trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari
312 páginas
Preço sugerido: R$44,50

*

O artigo de Galindo continua no sentido de relacionar a obra de David Foster Wallace com a de outros ficcionistas norteamericanos (como Jonathan Franzen e Thomas Pynchon), e termina numa bela conclusão sobre a própria missão de Wallace nesse contexto. Vale a pena a leitura.

*


*

Por coincidência, o escritor André de Leones publicou uma resenha da coletânea de ensaios hoje, no Estadão. Sérgio Rodrigues também escreveu sobre ela.

*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Como ficar sozinho
Jonathan Franzen
Trad.: Oscar Pillagalo
328 páginas
Preço sugerido: R$46,00

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Aquela água toda, João Anzanello Carrascoza


O paulista João Anzanello Carrascoza (1962) é conhecido no cenário literário brasileiro por carregar uma grande tradição: a contística. Autor de diversos livros de contos, e uns poucos romances encaixados como infanto-juvenil (são mais de 20 no total), o publicitário é um prolífico contista que ainda leva outra bandeira: a de poeta das coisas simples.

Foi o que ele mesmo disse na FLIP 2012, na mesa em que participou, ao lado de Zuenir Ventura, Dulce Maria Cardoso e João Cesar de Castro Rocha. “Quero buscar a poética dos dias que não são FLIP”, disse naquela ocasião. Disse Carrascoza, outro dia: “Drummond falava que há reservas de poesia no mundo: por que não buscamos isso com mais frequência?”.

Num escritor tão prolífico, é de se esperar alguma irregularidade: no meio de contos de menor impacto (mas sempre com uma habilidade narrativa muito própria, uma voz fortíssima), há algumas pérolas, brilhantes. É o que acontece com o recente Aquela água toda (2012), publicado pela Cosac Naify num projeto gráfico ousado, no qual os contos são ilustrados por Leya Mira Brander, e as ilustrações num papel vegetal, o mesmo que reveste o livro.

Os onze contos do livro são pequenos recortes de vidas tradicionais: o ponto de vista familiar é sempre conservador, sempre paternalista. As famílias, sempre muito normais, com pequenos ódios e grandes amores; as percepções, infinitas e momentâneas, de embates que ocorrem com todos, todos os dias. Isso é marcado muitas vezes no início dos contos:

“Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão” (p. 33)
“Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de descuido. O casal não iria [...]” (p. 37)
“Aconteceu que o pai, à mesa de jantar, disse de repente: [...]” (p. 51)
“Havia um homem. Sua mulher, as meninas” (p. 86)

Há, na maioria dos contos, uma busca incessante pela “inteireza” (palavra que aparece com frequência), a inteireza de qualquer coisa, da vida, da família, do amor: uma busca que já começa, no mínimo, incerta. Incerta porque há a necessidade de se escrever um conto sobre isso.

João A. Carrascoza também é redator
publicitário e professor universitário
de propaganda (Foto Divulgação
Cosac Naify)
Aqui há outra dúvida sobre os contos de Carrascoza, de maneira geral: onde está a necessidade de escrever certas coisas? Essa necessidade existe? Livros muito fortes passam a seguinte impressão: a de que precisam ser escritos. Passar a impressão de uma falta de necessidade parece um indício de fraqueza: impressões. Ouvindo uma longa entrevista de Paulo Leminski (gravada em 1982), percebe-se a certeza nas palavras dele: a poesia não tem porquê. Mas e a prosa, é tão certa nessa não-necessidade? Duvido muito.

Por exemplo, o conto que dá título ao livro. Em quatro páginas, o narrador (que acompanha mais de perto o menino da Família) descreve o encontro do menino com o mar e depois o reencontro com a Família que o esquece no ônibus: tudo num ambiente carregadíssimo de emoções em que a imagem “aquela água toda” aparece repetidamente.

Outro exemplo, o conto “Cristina”, em que o narrador, agora em primeira pessoa, é o menino, e vive uma paixão que, se você é de classe média e urbano (como eu sou), já deve ter vivido: a primeira ida ao cinema acompanhado, as dúvidas de pegar na mão ou não pegar, e o beijo no rosto na despedida: “O meu corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que poucas vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim”. Lugar-comum?

Este o pior de todos: “Grandes feitos”, que parece ser um dos preferidos do autor, se não o preferido (deste livro). Foi a leitura que ele fez na FLIP, em julho. A voz do narrador é inconfundível, isso não se pode negar. Mas o conto é, em uma palavra, desnecessário. Um derramamento de imagens piegas sobre uma família tradicional (Pai, Mãe, Filho): “Vestiram-se em seguida, sentindo a pele fresca como a manhã que continuava a vazar pela janela adentro, e que nem dava mostras de que envelhecia - era preciso cerrar bem os olhos para captar seu avanço, lento”.

O que estou tentando dizer é que Carrascoza levou a ideia de pegar a poesia do cotidiano a um limite muito tênue entre a poesia de coisas simples (que ele quer fazer) e o retrato piegas de rotinas desinteressantes (o efeito atingido por este livro). É arriscado demais.

Agora, ele acerta justamente quando recua um pouco deste limite e escreve relatos que, embora abordem temas do cotidiano, não são tão corriqueiros quanto uma ida ao cinema. “Recolhimento” e “Mundo justo” são as duas pérolas emocionantes do livro. Nesses dois contos, o autor utiliza a sua voz inconfundível e a habilidade narrativa que carrega para construir duas histórias poderosas.

Apenas uma pequena prévia para o leitor: em Recolhimento, o narrador em terceira pessoa narra a partir de um suposto funcionário público que recolhe animais de estimação mortos; em Mundo justo, em primeira pessoa, o narrador narra suas memórias de uma época da infância na qual jogou basquete.

Como falei, as famílias de Carrascoza, embora sempre tradicionais, carregam juntas uma busca pela “inteireza”, fato que pode ser entendido como a fuga da morte: há constantemente o medo da morte, o temor de que algo — quase sempre em relação à Família — ainda esteja por fazer, e que este algo ainda fique por fazer quando a hora da morte chegar. Equilibrar os personagens na linha que separa a razão da loucura nesse ponto, eis o desafio lançado por esse narrador.

Outra coisa, para não ser injusto. Carrascoza prega aquela ideia de poética das coisas simples: é a sua proposta, o seu habitat como ficcionista. A pergunta certa, então, é a seguinte: ele se apega a esta ideia (e a cumpre) com Aquela água toda? Sem dúvida. Analisar o autor de fora desse prisma (como eu fiz aqui) pode ser apenas um artifício crítico desnecessário.

*
Aquela água toda
João Anzanello Carrascoza
Ilustrações Leya Mira Brander
96 páginas, 11 ilustrações
Preço sugerido: R$39,90

*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
68 contos de Raymond Carver
Raymond Carver
Tradução: Rubens Figueiredo
712 páginas
Preço sugerido: R$54,00

Os contos de Carver também passam pelo tema familiar. Este livro é uma obra-prima.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Jornal da guerra contra os taedos, Manoel Carlos Karam


Num artigo publicado em 1859, Machado de Assis: “O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?”. Independente da crítica qualquer a que Machado tenha se arriscado, mais de um século depois o curitibano Manoel Carlos Karam (1966-2007) também se arriscou a responder: com Jornal da guerra contra os taedos (Kafka Edições, 2008), Karam escreveu um documentário preciso sobre muitas das nossas ridículas verdades humanas.

Karam faz parte de um grupo de escritores curitibanos que está em constante risco de desaparecimento: apesar de uma ou outra editora (eventualmente, a Companhia das Letras) esboçar um reconhecimento da grande qualidade literária desse grupo, ele ainda é curitibano por definição. Por obstáculos do mercado, vontade própria, ou mesmo escassez de público leitor, Manoel Carlos Karam, Jamil Snege, Wilson Bueno e Valêncio Xavier certamente ainda não alcançaram o êxito literário a que foram destinados.

Jornal da guerra contra os taedos é um romace póstumo de Karam (o livro foi lançado em 2008 pela Kafka Edições, editora curitibana, um ano depois do falecimento do autor). Composto de pequenas reflexões (ou crônicas) de uma guerra contra os taedos (“nossos vizinhos”), separados por páginas na edição caprichada, o livro é o relato de um jornalista (Karam foi jornalista) sobre os absurdos da guerra.

Na camada superficial, é fácil perceber a ironia do autor no que diz respeito às guerras em si. Está lá, na contracapa, um dos capítulos:

“Nossos soldados invadiram o território taedo pelo norte. De bicicleta. Não houve batalha. Os taedos ficaram tão humilhados pelo tamanho de nosso desprezo — atacar de bicicleta — que preferiram gastar o tempo desmentindo a notícia de que nossos soldados, de bicicleta, invadiram o território deles. Então eles resolveram nos humilhar, mas apenas nos plagiaram. Invadiram o nosso território pelo norte. De camelo. Ficamos tão humilhados pelo tamanho do desprezo deles — atacar com camelos — que preferimos gastar o tempo desmentindo a notícia de que os soldados deles, de camelo, invadiram o nosso território”.

Manoel Carlos Karam (Foto: Glória Flügel)
É esse o tom que domina o livro: a voz do narrador é sempre falsamente ingênua e ingenuamente mordaz. Ao relatar a guerra, o jornalista, que aqui absorveu a literatura e dela tirou parte do seu substrato (falo mais sobre isso abaixo), na verdade faz um relato da hipocrisia que rege uma sociedade egoísta, fria e autodestrutiva. 

Isso em vários níveis, e sempre com o mesmo tom, que serve até para dar um caráter quixotesco ao livro.  Karam bate de frente na religião, no militarismo, no marketing político e no medo: “Quem tem cu tem medo”. O medo, que afinal é o tema principal do belo livro de Karam.

“A bandeira dos taedos era totalmente branca, apenas o branco, nada mais. Cada vez que eles apareciam vinha a dificuldade, saber se estavam em rendição ou ataque”. O leitor então é o taedo, o leitor que continuamente busca uma resposta para as inquietações lançadas pelo mestre capítulo a capítulo, e que o próprio faz questão de responder:

“Quem está ganhando a guerra?
— Nós!
— Nós!”

*
A literatura também está presente no livro de Karam como um dos temas tratados, mesmo que de maneira sutil. Já foi mencionado o caráter quixotesco do narrador, e há também a semelhança com Cervantes por se tratar de um texto ficcionalmente traduzido; em um dos pequenos capítulos, o narrador se refere a uma das fronteiras com os taedos, a do deserto, e que mesmo quando a guerra já havia acabado, “nós” ficávamos esperando os taedos, e como eles não vinham, esperamos os tártaros, e como eles não vinham, “estamos também à espera de Godot”; há um capítulo com clara referência a Guerra e paz, título máximo de Tolstói; outro capítulo começa da mesma forma que A Metamorfose; etc.

Como foi falado por aqui na última resenha, por que fugir dos grandes mestres?

*
A ilustração de capa é de
Pedro Franz
Quando eu trabalhava no jornal Cândido, fizemos uma edição cujo material principal partia da obra de Manoel Carlos Karam. Fiz uma matéria sobre as marcas que Karam deixou na imprensa e no teatro paranaenses e sobre o seu projeto literário. Quando deixou o teatro de lado para escrever prosa de ficção, Karam traçou para si mesmo um projeto de traçar quatro painéis (país, cidade, casa, indivíduo), e o fez, com, respectivamente, Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscaras (1992), Cebola (1997) e Pescoço ladeado por parafusos (2001).

Karam ainda publicou a coletânea de contos Comendo bolacha maria no dia de São Nunca (1999) e os romances Encrenca (2002) e Sujeito oculto (2004).

Naquela edição do Cândido, também há textos de Nelson de Oliveira e Luiz Andrioli (sobre MCK) e também inéditos do autor.


*
Jornal da guerra contra os taedos
Manoel Carlos Karam
160 páginas
Preço sugerido: R$25,00

*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Ficção onívora
Jamil Snege
Grupo 1 (1978)
48 páginas
Só se acha na Estante virtual, sai por R$49,00

Jamil Snege é pouco conhecido fora de Curitiba: irônica injustiça com o autor dos contos de Ficção onívora, e entre outros, da maravilhosa novela Viver é prejudicial à saúde.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Quero ser Reginaldo Pujol Filho, Reginaldo Pujol Filho

Desagravo à ficção sobre literatura

O relativo sucesso no Brasil de escritores como Enrique Vila-Matas levanta um ponto de vista curioso, com certeza, e conservador, talvez: o de que a literatura metaficcional seja, em última instância, um problema em si mesma. O problema: fazer ficção sobre escritores e sobre literatura levaria, fatalmente, (1) ao extermínio do romance, uma vez que a literatura acabaria e (2) à restrição cada vez maior da palavra escrita. Algo como o fim da história marxista. 

Ora, nada mais injusto: se faz literatura sobre escritores e sobre livros desde Cervantes. Como fala James Wood, a invenção do flaneur (com Flaubert) transforma todos nós (personagens ou leitores) em escritores. Dois autores realistas que, entre outros assuntos, fazem literatura sobre escritores e sobre livros: Philip Roth e J. M. Coetzee. Brasileiro: os primeiros livros de Reinaldo Moraes têm o protagonista escritor. Não dá para falar que estes exemplos são influenciados por alguma mania recente, ou que a literatura deles leve a um buraco sem fundo, ou que eles sejam tomados por uma vontade de pirotecnia estilística (na verdade, personagem escritor não tem nada de pirotécnico).

Ler uma história sobre adultério pode agradar um leitor mais do que uma história sobre congestionamento (ou, afinal, sobre um escritor). Se Machado ou Cortázar não tivessem escrito suas histórias da maneira como escreveram, elas seriam reduzidas a clichês sem sal (triângulo amoroso e tédio do congestionamento). Foi a sua realização que as fez, e não previamente seu conteúdo. 

O livro do gaúcho Reginaldo Pujol Filho (1980) pega toda esta discussão e a transforma num exercício literário autoirônico. E vai além: acrescenta o jogo muitas vezes hipócrita das influências, as assume (e debocha delas), e escreve seu segundo livro com um título bem claro: Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, em 2010).

A partir daí, os contos são todos denominados assim: “Quero ser Miguel de Cervantes”, “Quero ser Luigi Pirandello”, etc, e na maior parte do tempo refaz, satiriza, parodia e reproduz a literatura original de cada escritor. Pujol Filho tensiona os lugares-comuns da influência de escritores famosos até um ponto de ruptura (aqui o sucesso possível) para então criar uma voz própria (não é esse o desejo expresso no título?). É arriscado.

O problema é quando essa tensão não é suficiente: ao invés de alcançar a originalidade, o autor cai na armadilha da solução fácil ou óbvia. Por exemplo: ao levar ao pé da letra a vontade de se livrar da influência de Rubem Fonseca e por conseguinte se livrar do escritor, no conto “Quero ser Rubem Fonseca” o narrador tenta literalmente atropelar o autor de “Agosto”. Claro que a ironia (e o subtexto) nesta tentativa é muito clara: mas por um critério de autenticidade, este é o conto que não deveria estar no livro. Essa solução também não ocorre apenas neste texto.

Mas as coisas melhoram. Em “Quero ser Luis Fernando Verissimo” há uma mímica de um diálogo (sempre engraçado) do famoso analista de Bagé com alguém que, afinal de contas, quer ser Luis Fernando Verissimo. Em “Quero ser Gonçalo M. Tavares”, o narrador é o Senhor Pujol que quer entrar n’O Bairro do angolano e exulta quando encontra a “dízima semântica”. Em “Quero ser Italo Calvino” o narrador anota e discorre sobre seis ideias para “Quero ser Italo Calvino”. Com “Quero ser Machado de Assis”, Pujol leva o narrador machadiano ao limite do absurdo:

“Bem, continuemos a história. Contudo, como se narra com um personagem dormindo no sofá e outro ausente? Complica-se assim a minha atuação. Até esperaria para ver o que acontece, mas o que acontece é que há um leitor do outro lado, talvez já esperando em uma fila de banco, em uma sala de espera, em um aeroporto, não deve estar disposto a uma metaespera. Resta-me acordar a moça e provocar algum acontecimento digno de narração. Pois vou [...]”

Reginaldo Pujol Filho (Foto: Vini Marques)
O conto que deu origem ao livro, segundo o próprio autor em uma nota, é “Quero ser Amílcar Bettega Barbosa”, baseado num conto de Amílcar em que o seu o narrador encontra e entrevista Júlio Cortázar e, surpresa, percebe que o argentino esqueceu algumas folhas com manuscritos inéditos. A história é previsível, mas no meio dela há um exercício de investigação interessante. 

Não é regra, mas boa parte dos contos traz um personagem “real”, um escritor que de fato existe (por exemplo, Amílcar Bettega Barbosa), mas é ficcionalizado por Pujol. James Wood fala sobre isso no “Como funciona a ficção” (Cosac Naify, 2012, 2. ed):

“Talvez porque eu não saiba bem o que é um personagem, acho muito comoventes aqueles romances pós modernos [...] que nos apresentam personagens ao mesmo tempo reais e irreais. Em todos esses romances, o autor nos pede para refletir sobre o caráter fictício dos heróis e heroínas que aparecem no título. E, num excelente paradoxo, é justamente essa reflexão que desperta no leitor o desejo de tornar esses personagens ‘reais’, de dizer aos autores: ‘Eu sei que eles são apenas fictícios - você já me disse várias vezes. Mas eu só consigo conhecê-los tratando-os como reais’”

As narrativas “extra-literárias” também fazem parte do livro de Pujol: a escolha por envolver escritores e personagens de ficção (da literatura) nas histórias não é um valor intrínseco, como querem acreditar aqueles que defendem as ideias de que falei no início do texto. Além disso, o que há aqui é um provocador, realizando (e tentando realizar) mimeses descaradas de seus autores favoritos, sem medo de admiti-las, explorá-las, debochar delas: um caráter muito mais honesto do que tentar se esconder por trás das mesmas.

Nenhum escritor gosta de responder à pergunta “quem são suas influências”. O ponto é refletir até que altura ela é um lugar-comum e até que altura ela é assustadora.

Prova de que esse tipo de literatura não se encerra em si mesma é a seguinte: qualquer um pode ficar à vontade para escrever o seu próprio “Quero ser Reginaldo Pujol Filho”, fazendo ele mesmo uma mimese, de, por que não, Reginaldo Pujol Filho.

*
Quero ser Reginaldo Pujol Filho
Reginaldo Pujol Filho
144 páginas
Preço sugerido: R$28,00

*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Sobrescritos - 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos 
Sérgio Rodrigues
Arquipélago Editorial (2010)
152 páginas
Preço sugerido: R$25,00

sábado, 15 de setembro de 2012

Carlos Machado: "Dalton e Tezza são os principais alimentos de tudo que faço na literatura"

Carlos Machado
Foto Julio Al Rashid
Carlos Machado (1977) é escritor, compositor, músico e professor curitibano. Já lançou três livros pela editora 7Letras (Balada de uma retina sul-americana, 2006, é o mais recente por aquela editora)  e sua carreira na música vai do heavy metal à MPB. Hoje (15), às 16h, ele lança e autografa “Poeira fria”, publicado pela editora Arte e Letra, na livraria da editora (Al. Presidente Taunay, 130, Batel, Curitiba).


Na breve entrevista a seguir, concedida ao blog por email, o escritor fala sobre a demora em publicar um novo livro, sobre a sua relação pessoal com a psicanálise, e sobre a afinidade com a obra de autores fundamentais de Curitiba: Cristovão Tezza e Dalton Trevisan (“[eles] são os principais alimentos de tudo que faço na literatura”). Um novo livro para 2013 também está previsto.

Machado, que também é professor de segundo grau numa escola particular de Curitiba, ainda falou suas impressões em relação aos alunos e à leitura. “Praticamente todos os alunos (em uma escola com 2000 deles) deixavam o lanche ou o esporte de lado no recreio pra DEVORAREM as aventuras de Harry Potter”, diz. “Porém, quando se trata de literatura brasileira, ah, aí ninguém gosta, ninguém lê, ninguém tem interesse”.

Biblioteca Vertical: Desde que você publicou o seu primeiro romance, o intervalo para publicar "Poeira fria" foi o mais longo. Houve algo diferente na produção deste livro em comparação com os outros, ou foi a sua vida artística mesmo que deu uma "pausa" à literatura?

Carlos Machado: Pois é, na verdade, a partir do momento em que comecei a publicar, 2004, foram três seguidos (2004, 2005 e 2006). Em 2007, eu já estava com outro livro pronto, mas não publiquei. Isso porque me envolvi com minha música em tempo integral (quando não estava dando aulas, naturalmente) já que minha banda havia terminado (digo isso porque ao mesmo tempo em que lancei os livros eu tocava em uma banda de heavy metal – por 10 anos – e gravamos 4 CDs nesse período). Quando a banda acabou, em 2008/2009, eu me dediquei à minha música, às minhas composições de MPB – e gravei TENDÈU em 2008/2009, SAMBA PORTÁTIL em 2010/2011 e LONGE em 2012. Agora voltei a publicar meus livros. “Poeira Fria” é o primeiro depois desse período, mas já enviei outro pra editora, penso que publicaremos ano que vem. E para o ano que vem também devo lançar o DVD e CD ao vivo que gravei no Guairinha dia 8 de agosto deste ano, contemplando músicas dos três CDS e com a participação de meus amigos e parceiros Fernando Koproski (meu maior parceiro nas músicas), Alexandre França e Julia Mallmann, e com minha banda PORTÁTIL (banda que montei pra me acompanhar nos show do CD LONGE).

BV: A psicanálise é algo bastante presente neste livro. Você pode fazer um paralelo sobre o que a psicanálise representa para a sua vida e sobre o que ela representa para a sua ficção?

CM: A Psicanálise faz parte da literatura contemporânea de modo geral, por vezes diretamente (como em A Identidade, de Milan Kundera) ou indiretamente (como nos livros que têm fluxo de consciência – lógico que falo de modo geral). Os traços da psicanálise, os ecos desses pensamentos estão presentes na literatura do século XX e XXI. Além dessas características gerais que vêm aparecendo nos textos, a minha relação é bem próxima e pessoal pelo fato de ter sido casado com uma psicanalista. Naturalmente que essa relação se faz muito presente na minha obra como escritor ou compositor popular.

BV: As referências aos escritores curitibanos são muito claras no livro. Qual é o seu sentimento em relação ao cenário da literatura curitibana? Você sente alguma responsabilidade em se relacionar (ficcionalmente) com autores como Dalton Trevisan e Cristovão Tezza?

CM: Curitiba respira literatura. Tem uma das melhores literaturas do país, mas ainda não necessariamente uma estrutura grande suficiente para que as obras sejam mostradas (nem mesmo para os curitibanos). Porém, felizmente, esse cenário, desde quando comecei (no início dos anos 2000) melhorou bastante! Temos editoras profissionais investindo em uma literatura que não é necessariamente técnica e com tudo que envolve a produção e o lançamento de um livro, como livrarias, assessores, jornalistas, críticos etc. Ainda temos muito pela frente, mas sou otimista.

Agora, sobre a relação dessa literatura com minha obra. Dalton e Tezza são os principais alimentos de tudo que faço na literatura (e por vezes na música). Sou absolutamente entregue às obras deles. Comecei a me interessar e a pensar que poderia ser escritor quando conheci a obra do Tezza (por volta de 1989) e logo me deparei com Dalton Trevisan, aí não teve mais volta.

BV: Um dos lugares comuns do jornalismo de literatura, hoje em dia, é questionar escritores sobre a formação de leitores. Mas creio que essa pergunta se aplica no seu caso pelo fato de você também ser professor de literatura brasileira e coordenador escolar. Qual é o quadro que você percebe a partir dos seus alunos, qual é o grau de interesse pela leitura?

CM: Bem, Guilherme, a literatura está em busca de leitores, em crise há muitos anos. Eu vi alguns fenômenos acontecerem ao meu lado que até hoje me impressionam, mas ainda não tenho muita certeza das consequências. Me refiro ao fato de ter convivido com crianças e adolescentes que passavam todos  os momentos livres na escola (e isso significa, por exemplo, o horário do recreio) lendo Harry Potter. Impressionante mesmo, PRATICAMENTE TODOS os alunos (em uma escola com 2.000 deles) deixavam o lanche ou o esporte de lado no recreio pra DEVORAREM as aventuras de Harry Potter (e muitos não esperavam as traduções, liam no original mesmo). Isso foi há alguns anos (sei que muitos desses alunos foram estudar letras e inclusive escreveram ou estão escrevendo suas monografias de conclusão de curso falando dessas obras). Ou seja, uma obra como essa, por mais que seja de duvidosa qualidade literária (não quero entrar nessa discussão) formou uma geração de leitores que depois foram para outros autores e alguns continuam até hoje (eu me formei com a leitura da série Vagalume, sinto que há uma relação muito próxima). Bem, há alguns poucos anos (4 ou 5) o fenômeno aconteceu com livros sobre vampiros (o que não é muito diferente de Harry Potter). Porém, quando se trata de literatura brasileira, música brasileira, ah, aí ninguém gosta, ninguém lê, ninguém tem interesse. Outro fenômeno.

*
Serviço
Lançamento e Sessão de autógrafos de Poeira Fria, de Carlos Machado
15 de setembro de 2012
16h
Livraria Arte & Letra (Al. Presidente Taunay, 130, Batel, Curitiba)

Poeira fria, Carlos Machado

Em uma novela curta divida sob três focos narrativos, Carlos Machado (1977) coloca Curitiba e a literatura curitibana como base de sustentação para o personagem altamente deprimido de “Poeira fria”. O personagem — que vale apenas citar que também é músico e professor de literatura, como o próprio autor — é quem vive a narrativa estruturada em três partes, das quais falaremos abaixo, mas preste atenção: se o leitor estiver um pouco triste, a leitura do quarto livro de Machado pode não fazer lá muito bem.


Isso porque o narrador (que muitas vezes é o próprio personagem) constrói um fundo do poço aparentemente sem fim (família completamente infeliz, separação amoroso traumática, mortes e etc) e joga o personagem lá dentro: a análise é para ele a forma de escavar sua saída de lá, e claro, fica a cargo do leitor descobrir se houve de fato uma saída.

A questão é que a análise (com uma psicanalista, ora) é uma das três partes que compõem a narrativa: diálogos diretos (com uso do travessão) e verossímeis revelam, pelo menos, alguma proximidade do autor com o processo psicanalítico, o que pode ser sintomático para o entendimento da narrativa (por exemplo, o uso de sonhos aqui e acolá). 
“— Pois é, acho que sim. Acabei de sair de casa novamente. Eu morava com minha noiva. Saí de casa.
— Foi você quem saiu?
— Sim. Quer dizer, não sei ao certo o que aconteceu. Eu saí, mas não tinha certeza se deveria sair. Quero voltar, mas acho que não posso mais. Nunca estive tão sozinho como agora. Não consigo mais nem por telefone! Preciso me afastar. Preciso dar um fim a isso.
— A isso? O que é isso?
— Não sei. Preciso terminar algo que comecei e não teve fim. Aliás, como tudo em minha vida parece que nunca tem fim, eu apenas sobreponho situações. Continuo as situações.
— Você é a cirrose de seu pai? Certo. Vamos deixar por aqui.”
Carlos Machado
autografa o livro
na Semana Literária
do SESC, em Curitiba
Foto: Divulgação
Outro foco narrativo é os monólogos do personagem, em primeira pessoa, que depois de um momento de dúvida passam a ser claramente cartas (entregues, jogadas no lixo, apenas imaginadas?). Isso porque há uma pequena diferenciação tipográfica no texto (em itálico) que identifica essa narração em primeira pessoa, e é bem depois da metade do livro que o fato de serem cartas fica claro. Nenhum juízo de valor aqui. A orientação psicanalítica é presente se observamos essa definição de Cristovão Tezza: “A carta, como gênero, é um breve e solitário combate do indivíduo. O poder literário moderno da composição epistolar está exatamente nesse ponto, e sua sobrevivência eventual depende dessa presença viva.” Tezza se refere a cartas reais, digamos, mas por que esse processo não pode ser aplicado aqui também? Ao ficcionalizar epistolas, o escritor subverte esse processo.


"Acho que ela o amava, sim, apesar de tudo. Sabia que ele não tinha culpa. Não conseguiu se livrar da bebida a tempo. Fiquei parado ali por alguns minutos, e no instante  em que eu estava me virando para ir embora, ele abriu os olhos e tentou falar alguma coisa. Mas apenas tossiu. Tossiu tanto que chegou a sair sangue pela boca. Parecia que estava vomitando algum pedaço de carne. Eu não deveria estar ali."
A terceira voz narrativa é a que melhor revela o domínio do autor sobre um determinado estilo. Em terceira pessoa, o narrador de estilo indireto livre acompanha o personagem num texto altamente realista: impossível não pensar (além da referência direta) no próprio Tezza. Aliás, na entrevista, o próprio Carlos Machado disse que tudo de sua literatura sai de Tezza e Trevisan: é bastante arriscado, por um lado, mas positivo por outro. A assimilação destes dois grandes escritores por parte da produção atual pode sim apontar caminhos novos para o futuro.
"Mais uma vez, o olhar se perde na urina indo pelo vaso abaixo. Não sabe o que pensar exatamente nesses momentos. Algo de impuro indo para o ralo, quase que literalmente. Já se perdeu inúmeras vezes beijando o ralo. Precisa se macular ainda mais. Sabe que há dias não consegue sair da cama, muito menos de casa, por isso, esqueceu-se de tomar banho. Não precisou. Mas agora quer tentar uma reação, nem que seja uma pequena migalha de pão que já está amassado há anos. Ensaia uma recuperação com um sorriso no canto dos lábios, como se apenas um banho fosse suficiente para olhar acima das cabeças. Pensa em uma letra que escreveu para a banda há alguns anos. “Acima das cabeças, o pensamento”. Mais uma canção que ficou para ninguém ouvir, deitada no porão da casa de praia que nunca teve."
São nas considerações sobre o suicídio (que estão especialmente nas análises e na narração em terceira pessoa) que o autor deixa claro que o seu personagem vale nada: não há coragem, não há vontade de morrer. A relutância em se matar, apesar da depressão evidente, escancara esse personagem ao ridículo, que é quase inverossímil, mas não: apenas revela uma fragilidade que antes de ser comovente é patética. A habilidade narrativa do autor (que se mostra mais forte nas páginas finais do livro) se concentra exatamente nessa desconstrução do personagem. Desconstrução do próprio indivíduo, método da psicanálise, método que encerra o livro com uma circularidade sutil, mas que, claro, fica para o leitor descobrir.

*
Poeira Fria
Carlos Machado
Arte & Letra (2012)
98 págs.
R$ 28,00

*
Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

A máquina de fazer espanhóis
valter hugo mãe
Cosac Naify (2011)
256 páginas
R$39,00

A depressão e algumas de suas consequências também estão presentes no bom livro de valter hugo mãe.