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sábado, 15 de setembro de 2012

Carlos Machado: "Dalton e Tezza são os principais alimentos de tudo que faço na literatura"

Carlos Machado
Foto Julio Al Rashid
Carlos Machado (1977) é escritor, compositor, músico e professor curitibano. Já lançou três livros pela editora 7Letras (Balada de uma retina sul-americana, 2006, é o mais recente por aquela editora)  e sua carreira na música vai do heavy metal à MPB. Hoje (15), às 16h, ele lança e autografa “Poeira fria”, publicado pela editora Arte e Letra, na livraria da editora (Al. Presidente Taunay, 130, Batel, Curitiba).


Na breve entrevista a seguir, concedida ao blog por email, o escritor fala sobre a demora em publicar um novo livro, sobre a sua relação pessoal com a psicanálise, e sobre a afinidade com a obra de autores fundamentais de Curitiba: Cristovão Tezza e Dalton Trevisan (“[eles] são os principais alimentos de tudo que faço na literatura”). Um novo livro para 2013 também está previsto.

Machado, que também é professor de segundo grau numa escola particular de Curitiba, ainda falou suas impressões em relação aos alunos e à leitura. “Praticamente todos os alunos (em uma escola com 2000 deles) deixavam o lanche ou o esporte de lado no recreio pra DEVORAREM as aventuras de Harry Potter”, diz. “Porém, quando se trata de literatura brasileira, ah, aí ninguém gosta, ninguém lê, ninguém tem interesse”.

Biblioteca Vertical: Desde que você publicou o seu primeiro romance, o intervalo para publicar "Poeira fria" foi o mais longo. Houve algo diferente na produção deste livro em comparação com os outros, ou foi a sua vida artística mesmo que deu uma "pausa" à literatura?

Carlos Machado: Pois é, na verdade, a partir do momento em que comecei a publicar, 2004, foram três seguidos (2004, 2005 e 2006). Em 2007, eu já estava com outro livro pronto, mas não publiquei. Isso porque me envolvi com minha música em tempo integral (quando não estava dando aulas, naturalmente) já que minha banda havia terminado (digo isso porque ao mesmo tempo em que lancei os livros eu tocava em uma banda de heavy metal – por 10 anos – e gravamos 4 CDs nesse período). Quando a banda acabou, em 2008/2009, eu me dediquei à minha música, às minhas composições de MPB – e gravei TENDÈU em 2008/2009, SAMBA PORTÁTIL em 2010/2011 e LONGE em 2012. Agora voltei a publicar meus livros. “Poeira Fria” é o primeiro depois desse período, mas já enviei outro pra editora, penso que publicaremos ano que vem. E para o ano que vem também devo lançar o DVD e CD ao vivo que gravei no Guairinha dia 8 de agosto deste ano, contemplando músicas dos três CDS e com a participação de meus amigos e parceiros Fernando Koproski (meu maior parceiro nas músicas), Alexandre França e Julia Mallmann, e com minha banda PORTÁTIL (banda que montei pra me acompanhar nos show do CD LONGE).

BV: A psicanálise é algo bastante presente neste livro. Você pode fazer um paralelo sobre o que a psicanálise representa para a sua vida e sobre o que ela representa para a sua ficção?

CM: A Psicanálise faz parte da literatura contemporânea de modo geral, por vezes diretamente (como em A Identidade, de Milan Kundera) ou indiretamente (como nos livros que têm fluxo de consciência – lógico que falo de modo geral). Os traços da psicanálise, os ecos desses pensamentos estão presentes na literatura do século XX e XXI. Além dessas características gerais que vêm aparecendo nos textos, a minha relação é bem próxima e pessoal pelo fato de ter sido casado com uma psicanalista. Naturalmente que essa relação se faz muito presente na minha obra como escritor ou compositor popular.

BV: As referências aos escritores curitibanos são muito claras no livro. Qual é o seu sentimento em relação ao cenário da literatura curitibana? Você sente alguma responsabilidade em se relacionar (ficcionalmente) com autores como Dalton Trevisan e Cristovão Tezza?

CM: Curitiba respira literatura. Tem uma das melhores literaturas do país, mas ainda não necessariamente uma estrutura grande suficiente para que as obras sejam mostradas (nem mesmo para os curitibanos). Porém, felizmente, esse cenário, desde quando comecei (no início dos anos 2000) melhorou bastante! Temos editoras profissionais investindo em uma literatura que não é necessariamente técnica e com tudo que envolve a produção e o lançamento de um livro, como livrarias, assessores, jornalistas, críticos etc. Ainda temos muito pela frente, mas sou otimista.

Agora, sobre a relação dessa literatura com minha obra. Dalton e Tezza são os principais alimentos de tudo que faço na literatura (e por vezes na música). Sou absolutamente entregue às obras deles. Comecei a me interessar e a pensar que poderia ser escritor quando conheci a obra do Tezza (por volta de 1989) e logo me deparei com Dalton Trevisan, aí não teve mais volta.

BV: Um dos lugares comuns do jornalismo de literatura, hoje em dia, é questionar escritores sobre a formação de leitores. Mas creio que essa pergunta se aplica no seu caso pelo fato de você também ser professor de literatura brasileira e coordenador escolar. Qual é o quadro que você percebe a partir dos seus alunos, qual é o grau de interesse pela leitura?

CM: Bem, Guilherme, a literatura está em busca de leitores, em crise há muitos anos. Eu vi alguns fenômenos acontecerem ao meu lado que até hoje me impressionam, mas ainda não tenho muita certeza das consequências. Me refiro ao fato de ter convivido com crianças e adolescentes que passavam todos  os momentos livres na escola (e isso significa, por exemplo, o horário do recreio) lendo Harry Potter. Impressionante mesmo, PRATICAMENTE TODOS os alunos (em uma escola com 2.000 deles) deixavam o lanche ou o esporte de lado no recreio pra DEVORAREM as aventuras de Harry Potter (e muitos não esperavam as traduções, liam no original mesmo). Isso foi há alguns anos (sei que muitos desses alunos foram estudar letras e inclusive escreveram ou estão escrevendo suas monografias de conclusão de curso falando dessas obras). Ou seja, uma obra como essa, por mais que seja de duvidosa qualidade literária (não quero entrar nessa discussão) formou uma geração de leitores que depois foram para outros autores e alguns continuam até hoje (eu me formei com a leitura da série Vagalume, sinto que há uma relação muito próxima). Bem, há alguns poucos anos (4 ou 5) o fenômeno aconteceu com livros sobre vampiros (o que não é muito diferente de Harry Potter). Porém, quando se trata de literatura brasileira, música brasileira, ah, aí ninguém gosta, ninguém lê, ninguém tem interesse. Outro fenômeno.

*
Serviço
Lançamento e Sessão de autógrafos de Poeira Fria, de Carlos Machado
15 de setembro de 2012
16h
Livraria Arte & Letra (Al. Presidente Taunay, 130, Batel, Curitiba)

Poeira fria, Carlos Machado

Em uma novela curta divida sob três focos narrativos, Carlos Machado (1977) coloca Curitiba e a literatura curitibana como base de sustentação para o personagem altamente deprimido de “Poeira fria”. O personagem — que vale apenas citar que também é músico e professor de literatura, como o próprio autor — é quem vive a narrativa estruturada em três partes, das quais falaremos abaixo, mas preste atenção: se o leitor estiver um pouco triste, a leitura do quarto livro de Machado pode não fazer lá muito bem.


Isso porque o narrador (que muitas vezes é o próprio personagem) constrói um fundo do poço aparentemente sem fim (família completamente infeliz, separação amoroso traumática, mortes e etc) e joga o personagem lá dentro: a análise é para ele a forma de escavar sua saída de lá, e claro, fica a cargo do leitor descobrir se houve de fato uma saída.

A questão é que a análise (com uma psicanalista, ora) é uma das três partes que compõem a narrativa: diálogos diretos (com uso do travessão) e verossímeis revelam, pelo menos, alguma proximidade do autor com o processo psicanalítico, o que pode ser sintomático para o entendimento da narrativa (por exemplo, o uso de sonhos aqui e acolá). 
“— Pois é, acho que sim. Acabei de sair de casa novamente. Eu morava com minha noiva. Saí de casa.
— Foi você quem saiu?
— Sim. Quer dizer, não sei ao certo o que aconteceu. Eu saí, mas não tinha certeza se deveria sair. Quero voltar, mas acho que não posso mais. Nunca estive tão sozinho como agora. Não consigo mais nem por telefone! Preciso me afastar. Preciso dar um fim a isso.
— A isso? O que é isso?
— Não sei. Preciso terminar algo que comecei e não teve fim. Aliás, como tudo em minha vida parece que nunca tem fim, eu apenas sobreponho situações. Continuo as situações.
— Você é a cirrose de seu pai? Certo. Vamos deixar por aqui.”
Carlos Machado
autografa o livro
na Semana Literária
do SESC, em Curitiba
Foto: Divulgação
Outro foco narrativo é os monólogos do personagem, em primeira pessoa, que depois de um momento de dúvida passam a ser claramente cartas (entregues, jogadas no lixo, apenas imaginadas?). Isso porque há uma pequena diferenciação tipográfica no texto (em itálico) que identifica essa narração em primeira pessoa, e é bem depois da metade do livro que o fato de serem cartas fica claro. Nenhum juízo de valor aqui. A orientação psicanalítica é presente se observamos essa definição de Cristovão Tezza: “A carta, como gênero, é um breve e solitário combate do indivíduo. O poder literário moderno da composição epistolar está exatamente nesse ponto, e sua sobrevivência eventual depende dessa presença viva.” Tezza se refere a cartas reais, digamos, mas por que esse processo não pode ser aplicado aqui também? Ao ficcionalizar epistolas, o escritor subverte esse processo.


"Acho que ela o amava, sim, apesar de tudo. Sabia que ele não tinha culpa. Não conseguiu se livrar da bebida a tempo. Fiquei parado ali por alguns minutos, e no instante  em que eu estava me virando para ir embora, ele abriu os olhos e tentou falar alguma coisa. Mas apenas tossiu. Tossiu tanto que chegou a sair sangue pela boca. Parecia que estava vomitando algum pedaço de carne. Eu não deveria estar ali."
A terceira voz narrativa é a que melhor revela o domínio do autor sobre um determinado estilo. Em terceira pessoa, o narrador de estilo indireto livre acompanha o personagem num texto altamente realista: impossível não pensar (além da referência direta) no próprio Tezza. Aliás, na entrevista, o próprio Carlos Machado disse que tudo de sua literatura sai de Tezza e Trevisan: é bastante arriscado, por um lado, mas positivo por outro. A assimilação destes dois grandes escritores por parte da produção atual pode sim apontar caminhos novos para o futuro.
"Mais uma vez, o olhar se perde na urina indo pelo vaso abaixo. Não sabe o que pensar exatamente nesses momentos. Algo de impuro indo para o ralo, quase que literalmente. Já se perdeu inúmeras vezes beijando o ralo. Precisa se macular ainda mais. Sabe que há dias não consegue sair da cama, muito menos de casa, por isso, esqueceu-se de tomar banho. Não precisou. Mas agora quer tentar uma reação, nem que seja uma pequena migalha de pão que já está amassado há anos. Ensaia uma recuperação com um sorriso no canto dos lábios, como se apenas um banho fosse suficiente para olhar acima das cabeças. Pensa em uma letra que escreveu para a banda há alguns anos. “Acima das cabeças, o pensamento”. Mais uma canção que ficou para ninguém ouvir, deitada no porão da casa de praia que nunca teve."
São nas considerações sobre o suicídio (que estão especialmente nas análises e na narração em terceira pessoa) que o autor deixa claro que o seu personagem vale nada: não há coragem, não há vontade de morrer. A relutância em se matar, apesar da depressão evidente, escancara esse personagem ao ridículo, que é quase inverossímil, mas não: apenas revela uma fragilidade que antes de ser comovente é patética. A habilidade narrativa do autor (que se mostra mais forte nas páginas finais do livro) se concentra exatamente nessa desconstrução do personagem. Desconstrução do próprio indivíduo, método da psicanálise, método que encerra o livro com uma circularidade sutil, mas que, claro, fica para o leitor descobrir.

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Poeira Fria
Carlos Machado
Arte & Letra (2012)
98 págs.
R$ 28,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

A máquina de fazer espanhóis
valter hugo mãe
Cosac Naify (2011)
256 páginas
R$39,00

A depressão e algumas de suas consequências também estão presentes no bom livro de valter hugo mãe.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

O filho eterno, Cristovão Tezza

Quando a coragem faz a literatura

Na epígrafe escolhida para O filho eterno (2007), Cristovão Tezza (1952) usa a frase de Thomas Bernhard para fornecer uma chave à leitura de seu romance: “Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade”.

Ora, na obra de um autor até então notadamente confessional (mas não biográfico), a mistura de realidade e ficção é tão profusa que não há motivos para deixar claro o que é uma, e o que é outra. O recurso a Bernhard autoriza o leitor a pensar o que quiser nesse sentido. Em O filho eterno, toda a questão se inverte: com uma história claramente verossímil que ignora os limites entre ficção e realidade, a concentração do leitor passa em grande parte à brutalidade do relato.

“Mas não é uma tarefa simples ou fácil”, escreveu o próprio Tezza, catarinense de nascimento e curitibano por formação.

Dono de uma prosa reconhecida desde Trapo (1988) e Juliano Pavollini (1989) (aliás, dois livros escritos e lançados após os acontecimentos descritos em O filho eterno), o autodefinido realista Cristovão Tezza dificilmente ignoraria o fato mais importante de sua vida em sua própria literatura: o filho com síndrome de Down. Se antes ele era apenas uma presença implícita na sua obra, torna-se em 2007 o personagem central do romance brasileiro mais premiado da primeira década do século XXI.

Pelo relato minuciosamente descritivo, percebe-se outra chave do romance: o filho eterno, o personagem principal, portanto, é na verdade o próprio pai, frágil, teimoso, “alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver”. Pai que, num recurso estilístico ousado, torna-se sempre e insistentemente “ele”, nunca “Cristovão”, nunca “eu”. Pai que com uma impetuosidade comovente é desconstruído e humilhado.

No romance, a descrição objetiva que se mistura à carga emocional vai aos poucos traçando duas histórias concêntricas que ainda carregam um subtexto ensaístico: a história do pai e da sua relação com seu filho; a história do escritor; a reflexão praticamente filosófica que o autor faz sobre a família.

Numa sucessão de capítulos curtos, as duas histórias se alternam, muitas vezes paralelas: o desconforto do pai em aceitar o filho, o desconforto do escritor em não ver seus livros publicados; a formação do pai que deve ser um pai especial, a formação de um ser humano que deve ser o escritor. Inevitavelmente, as histórias se encontram, e perceber o encontro é um dos grandes prazeres estéticos deste livro.

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“Qual era mesmo seu filho? — aquele ali, mostrou a enfermeira solícita, e ele sorriu diante da criança imóvel, buscando um ponto de convergência”. A pergunta desse trecho pode ser aplicada a cada página que descreve a relação entre pai e filho até o final do romance. Melhor, quem era mesmo seu filho? Melhor ainda, quem mesmo é o filho?

“Escrever: fingir que não está acontecendo nada, e escrever. Refugiado nesse silêncio, ele volta à literatura, à maneira de antigamente”. E apenas vinte anos depois ele demonstra o ressentimento que na época não era capaz de sentir: “E ele escreve de outras coisas, não de seu filho ou de sua vida — em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a síndrome de Down entrará no seu texto. Esse é um problema seu, ele se repete, não dos outros, e você terá de resolvê-lo sozinho”.

Cristovão Tezza - Créditos: Record
O ensaio quase subcutâneo é potencializado para o personagem pela condição do filho: “ele jamais fará companhia ao meu mundo, o pai sabe, sentindo súbita a extensão do abismo, o mesmo de todo dia (e, talvez, o mesmo de todos os pais e de todos os filhos, o pai contemporiza)”. Se ter um filho, qualquer um, é um misto exagerado de felicidade e preocupação, a chegada do filho Down resolve esta questão para o personagem. O quê de luto pelo nascimento de um filho diferente do esperado é, no mínimo, assustador. Acrescente-se empatia, o leitor se assusta com a sua própria natureza: quem de nós teria sentimentos diferentes destes diante de uma situação assim, pergunta-se.

Escrever este livro demandou coragem. Roupá-lo de ficção, mais ainda. Um personagem de Philip Roth considera incrível a dificuldade das pessoas em conceber que uma história seja fruto da imaginação de alguém. No fundo, incrível mesmo é perceber a coragem de um homem ao imaginar (e então escrever) a mesma história que viveu.

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O filho eterno
Cristovão Tezza
Editora Record (2007)
224 páginas
Preço sugerido: R$37,90

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Patrimônio
Philip Roth
Tradução: Jorio Dauster
Companhia das Letras (2012)
192 páginas
Preço sugerido: R$34,00

Um relato real do autor americano autor de "O complexo de Portnoy" e do personagem Nathan Zuckerman, que trata da relação inversa: ele é o filho que tem que aprender a lidar com uma condição do pai.