sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O filho de mil homens, Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe (assim mesmo, com maiúsculas) levou o prêmio Portugal Telecom 2012 por a máquina de fazer espanhóis (Cosac Naify, 2011), merecidíssimo. O autor, angolano que vive em Portugal desde a infância, esteve no Brasil na FLIP 2011, fez tanto sucesso que acabou sendo o autor mais vendido daquela edição da Festa (justamente, o máquina..., que, naquela época, junto com o remorso de baltazar serapião, este publicado pela Editora 34, eram os seus únicos livros publicados por aqui).

Ele fez sucesso pela simpatia (hoje em dia, facilitador para qualquer artista), mas principalmente por um texto, uma carta. Se esse texto tiver sido uma jogada de marketing, foi, sem dúvida, a mais emocionante de todas. Mas acredito que não. Você mesmo pode decidir lendo a carta aqui, ou, principalmente, assistindo ao vídeo abaixo (são sete minutos, mas você não vai se arrepender, eu garanto):


Seu romance mais recente, O filho de mil homens (Cosac Naify, 2012), pega o gancho daquilo que Mãe falou ali no final, de que tem quarenta anos e não tem filhos. Os primeiros parágrafos dão conta do que eu preciso falar sobre a história:

“Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo.
     Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.
     Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade no espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía.”

A partir daí, Valter Hugo Mãe escreve um romance emocionante que, à semelhança das telenovelas brasileiras, se divide em histórias de personagens diferentes aparentemente sem conexão. O que aparece diante do decorrer do livro é um narrador seguro, que costura diferentes narrativas com tranquilidade (esse é o seu quinto romance; ele já publicou mais de quinze livros de poesia, nenhum deles no Brasil, infelizmente, porque o seu pendor para a poesia é muito evidente nos romances; chega a ser quase constrangedor).

Foto: Vítor Quelhas
Quem utiliza essa poesia na narração é um narrador que parece ser uma memória coletiva, memória esta que se veste exatamente de poesia. A linguagem criada por Mãe, também bastante presente nos outros livros, cria, por sua vez, um mundo muito particular. Um meio do caminho entre passado e presente, um não-lugar no espaço. O ficcionista atinge seu objetivo máximo, ao que parece, quando consegue equilibrar todos esses fatores; não dá pra exigir mais nada.

Entre alguns temas que passam pelo romance, há dois que se destacam: (1) a questão do “ser completo” e (2) a homossexualidade.

1. Desde os primeiros parágrafos essa busca está presente: para Crisóstomo (e para Mãe também, isso é muito claro) é urgente buscar algo que lhe complete a vida. A presença da morte é também muito forte nos livros, o que faz, ainda mais, essa busca pela totalidade da vida ser urgente. Às vezes, ainda, para os personagens deste livro, não basta ser completo, ser inteiro: há que se ser o dobro.

2. O tratamento que os personagens do romance (não necessariamente os principais, mas especialmente os vizinhos, os conhecidos) dispensam ao personagem homossexual (o narrador o chama, inicialmente, de “o homem maricas”, e depois descobre-se o seu nome, Antonino; essa mudança faz parte do próprio processo de incorporação do personagem), esse tratamento dá algumas dicas de que o romance está mais no passado do que no presente (embora, infeliz e tragicamente, alguns viventes ainda tenham comportamentos semelhantes). Falo da forma agressiva e preconceituosa que os personagens tratam Antonino especialmente na primeira metade do livro, ao considerá-lo, em uma só palavra, uma aberração. Além disso, a relação da mãe, que é uma das personagens antiquadas, digamos, com o filho é, inicialmente pelo menos, kafkiana. Esse relacionamento parece, em algum nível, com o relacionamento da mãe com Gregor Samsa.

De qualquer forma, o tratamento que Valter Hugo Mãe dá a esse tema insere o romance, de uma vez por todas, no mundo contemporâneo (não vou entregar nada, mas esse tratamento passa longe de lugares comuns politicamente corretos, igualmente).

Pegando do início, sabemos que esse é um livro sobre família. Mas não se engane. Como diz Silviano Santiago na orelha do livro, não há nada de tradicional aqui. Não há nada de comum na obra de Valter Hugo Mãe.

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O filho de mil homens
Valter Hugo Mãe
256 páginas
Preço sugerido: R$39,00

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Está ficando tarde demais
Antonio Tabbucchi
Tradução: Ana Lúcia Ramos Belardinelli
Rocco (2004)
196 páginas
Preço sugerido: R$30,50

Tabbucchi é outro especialista em criação de não-lugares; esse belíssimo romance epistolar também pode ser considerado como um tratado sobre a saudade.

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