segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Jornal da guerra contra os taedos, Manoel Carlos Karam


Num artigo publicado em 1859, Machado de Assis: “O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?”. Independente da crítica qualquer a que Machado tenha se arriscado, mais de um século depois o curitibano Manoel Carlos Karam (1966-2007) também se arriscou a responder: com Jornal da guerra contra os taedos (Kafka Edições, 2008), Karam escreveu um documentário preciso sobre muitas das nossas ridículas verdades humanas.

Karam faz parte de um grupo de escritores curitibanos que está em constante risco de desaparecimento: apesar de uma ou outra editora (eventualmente, a Companhia das Letras) esboçar um reconhecimento da grande qualidade literária desse grupo, ele ainda é curitibano por definição. Por obstáculos do mercado, vontade própria, ou mesmo escassez de público leitor, Manoel Carlos Karam, Jamil Snege, Wilson Bueno e Valêncio Xavier certamente ainda não alcançaram o êxito literário a que foram destinados.

Jornal da guerra contra os taedos é um romace póstumo de Karam (o livro foi lançado em 2008 pela Kafka Edições, editora curitibana, um ano depois do falecimento do autor). Composto de pequenas reflexões (ou crônicas) de uma guerra contra os taedos (“nossos vizinhos”), separados por páginas na edição caprichada, o livro é o relato de um jornalista (Karam foi jornalista) sobre os absurdos da guerra.

Na camada superficial, é fácil perceber a ironia do autor no que diz respeito às guerras em si. Está lá, na contracapa, um dos capítulos:

“Nossos soldados invadiram o território taedo pelo norte. De bicicleta. Não houve batalha. Os taedos ficaram tão humilhados pelo tamanho de nosso desprezo — atacar de bicicleta — que preferiram gastar o tempo desmentindo a notícia de que nossos soldados, de bicicleta, invadiram o território deles. Então eles resolveram nos humilhar, mas apenas nos plagiaram. Invadiram o nosso território pelo norte. De camelo. Ficamos tão humilhados pelo tamanho do desprezo deles — atacar com camelos — que preferimos gastar o tempo desmentindo a notícia de que os soldados deles, de camelo, invadiram o nosso território”.

Manoel Carlos Karam (Foto: Glória Flügel)
É esse o tom que domina o livro: a voz do narrador é sempre falsamente ingênua e ingenuamente mordaz. Ao relatar a guerra, o jornalista, que aqui absorveu a literatura e dela tirou parte do seu substrato (falo mais sobre isso abaixo), na verdade faz um relato da hipocrisia que rege uma sociedade egoísta, fria e autodestrutiva. 

Isso em vários níveis, e sempre com o mesmo tom, que serve até para dar um caráter quixotesco ao livro.  Karam bate de frente na religião, no militarismo, no marketing político e no medo: “Quem tem cu tem medo”. O medo, que afinal é o tema principal do belo livro de Karam.

“A bandeira dos taedos era totalmente branca, apenas o branco, nada mais. Cada vez que eles apareciam vinha a dificuldade, saber se estavam em rendição ou ataque”. O leitor então é o taedo, o leitor que continuamente busca uma resposta para as inquietações lançadas pelo mestre capítulo a capítulo, e que o próprio faz questão de responder:

“Quem está ganhando a guerra?
— Nós!
— Nós!”

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A literatura também está presente no livro de Karam como um dos temas tratados, mesmo que de maneira sutil. Já foi mencionado o caráter quixotesco do narrador, e há também a semelhança com Cervantes por se tratar de um texto ficcionalmente traduzido; em um dos pequenos capítulos, o narrador se refere a uma das fronteiras com os taedos, a do deserto, e que mesmo quando a guerra já havia acabado, “nós” ficávamos esperando os taedos, e como eles não vinham, esperamos os tártaros, e como eles não vinham, “estamos também à espera de Godot”; há um capítulo com clara referência a Guerra e paz, título máximo de Tolstói; outro capítulo começa da mesma forma que A Metamorfose; etc.

Como foi falado por aqui na última resenha, por que fugir dos grandes mestres?

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A ilustração de capa é de
Pedro Franz
Quando eu trabalhava no jornal Cândido, fizemos uma edição cujo material principal partia da obra de Manoel Carlos Karam. Fiz uma matéria sobre as marcas que Karam deixou na imprensa e no teatro paranaenses e sobre o seu projeto literário. Quando deixou o teatro de lado para escrever prosa de ficção, Karam traçou para si mesmo um projeto de traçar quatro painéis (país, cidade, casa, indivíduo), e o fez, com, respectivamente, Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscaras (1992), Cebola (1997) e Pescoço ladeado por parafusos (2001).

Karam ainda publicou a coletânea de contos Comendo bolacha maria no dia de São Nunca (1999) e os romances Encrenca (2002) e Sujeito oculto (2004).

Naquela edição do Cândido, também há textos de Nelson de Oliveira e Luiz Andrioli (sobre MCK) e também inéditos do autor.


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Jornal da guerra contra os taedos
Manoel Carlos Karam
160 páginas
Preço sugerido: R$25,00

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Um comentário:

  1. Estou lendo esse livro e confesso q nunca tinha ouvido falar d Manoel Carlos Karam. Mas estou adorando o livro. Esse escritor curitibano me surpreendeu! Parabéns pelo blog!

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