Em uma novela curta divida sob três focos narrativos, Carlos Machado (1977) coloca Curitiba e a literatura curitibana como base de sustentação para o personagem altamente deprimido de “Poeira fria”. O personagem — que vale apenas citar que também é músico e professor de literatura, como o próprio autor — é quem vive a narrativa estruturada em três partes, das quais falaremos abaixo, mas preste atenção: se o leitor estiver um pouco triste, a leitura do quarto livro de Machado pode não fazer lá muito bem.
Isso porque o narrador (que muitas vezes é o próprio personagem) constrói um fundo do poço aparentemente sem fim (família completamente infeliz, separação amoroso traumática, mortes e etc) e joga o personagem lá dentro: a análise é para ele a forma de escavar sua saída de lá, e claro, fica a cargo do leitor descobrir se houve de fato uma saída.
A questão é que a análise (com uma psicanalista, ora) é uma das três partes que compõem a narrativa: diálogos diretos (com uso do travessão) e verossímeis revelam, pelo menos, alguma proximidade do autor com o processo psicanalítico, o que pode ser sintomático para o entendimento da narrativa (por exemplo, o uso de sonhos aqui e acolá).
“— Pois é, acho que sim. Acabei de sair de casa novamente. Eu morava com minha noiva. Saí de casa.— Foi você quem saiu?— Sim. Quer dizer, não sei ao certo o que aconteceu. Eu saí, mas não tinha certeza se deveria sair. Quero voltar, mas acho que não posso mais. Nunca estive tão sozinho como agora. Não consigo mais nem por telefone! Preciso me afastar. Preciso dar um fim a isso.— A isso? O que é isso?— Não sei. Preciso terminar algo que comecei e não teve fim. Aliás, como tudo em minha vida parece que nunca tem fim, eu apenas sobreponho situações. Continuo as situações.— Você é a cirrose de seu pai? Certo. Vamos deixar por aqui.”
Carlos Machado autografa o livro na Semana Literária do SESC, em Curitiba Foto: Divulgação |
Outro foco narrativo é os monólogos do personagem, em primeira pessoa, que depois de um momento de dúvida passam a ser claramente cartas (entregues, jogadas no lixo, apenas imaginadas?). Isso porque há uma pequena diferenciação tipográfica no texto (em itálico) que identifica essa narração em primeira pessoa, e é bem depois da metade do livro que o fato de serem cartas fica claro. Nenhum juízo de valor aqui. A orientação psicanalítica é presente se observamos essa definição de Cristovão Tezza: “A carta, como gênero, é um breve e solitário combate do indivíduo. O poder literário moderno da composição epistolar está exatamente nesse ponto, e sua sobrevivência eventual depende dessa presença viva.” Tezza se refere a cartas reais, digamos, mas por que esse processo não pode ser aplicado aqui também? Ao ficcionalizar epistolas, o escritor subverte esse processo.
"Acho que ela o amava, sim, apesar de tudo. Sabia que ele não tinha culpa. Não conseguiu se livrar da bebida a tempo. Fiquei parado ali por alguns minutos, e no instante em que eu estava me virando para ir embora, ele abriu os olhos e tentou falar alguma coisa. Mas apenas tossiu. Tossiu tanto que chegou a sair sangue pela boca. Parecia que estava vomitando algum pedaço de carne. Eu não deveria estar ali."
A terceira voz narrativa é a que melhor revela o domínio do autor sobre um determinado estilo. Em terceira pessoa, o narrador de estilo indireto livre acompanha o personagem num texto altamente realista: impossível não pensar (além da referência direta) no próprio Tezza. Aliás, na entrevista, o próprio Carlos Machado disse que tudo de sua literatura sai de Tezza e Trevisan: é bastante arriscado, por um lado, mas positivo por outro. A assimilação destes dois grandes escritores por parte da produção atual pode sim apontar caminhos novos para o futuro.
"Mais uma vez, o olhar se perde na urina indo pelo vaso abaixo. Não sabe o que pensar exatamente nesses momentos. Algo de impuro indo para o ralo, quase que literalmente. Já se perdeu inúmeras vezes beijando o ralo. Precisa se macular ainda mais. Sabe que há dias não consegue sair da cama, muito menos de casa, por isso, esqueceu-se de tomar banho. Não precisou. Mas agora quer tentar uma reação, nem que seja uma pequena migalha de pão que já está amassado há anos. Ensaia uma recuperação com um sorriso no canto dos lábios, como se apenas um banho fosse suficiente para olhar acima das cabeças. Pensa em uma letra que escreveu para a banda há alguns anos. “Acima das cabeças, o pensamento”. Mais uma canção que ficou para ninguém ouvir, deitada no porão da casa de praia que nunca teve."
São nas considerações sobre o suicídio (que estão especialmente nas análises e na narração em terceira pessoa) que o autor deixa claro que o seu personagem vale nada: não há coragem, não há vontade de morrer. A relutância em se matar, apesar da depressão evidente, escancara esse personagem ao ridículo, que é quase inverossímil, mas não: apenas revela uma fragilidade que antes de ser comovente é patética. A habilidade narrativa do autor (que se mostra mais forte nas páginas finais do livro) se concentra exatamente nessa desconstrução do personagem. Desconstrução do próprio indivíduo, método da psicanálise, método que encerra o livro com uma circularidade sutil, mas que, claro, fica para o leitor descobrir.
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Carlos Machado
Arte & Letra (2012)
98 págs.
R$ 28,00
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A máquina de fazer espanhóis
valter hugo mãe
Cosac Naify (2011)
256 páginas
R$39,00
A depressão e algumas de suas consequências também estão presentes no bom livro de valter hugo mãe.
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