“Desse modo brutal, oprimidos até o fundo, viveram muitos homens do nosso tempo; todos, porém, durante um período relativamente curto. Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória.A essa pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim”.
Assim começa um dos capítulos de É isto um homem?, primeiro livro do químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987), judeu italiano sequestrado pelo fascismo e deportado para o campo de extermínio de Auschwitz em 1944. Lá, ele passou 11 meses até a ocupação da região pelo exército russo, em fevereiro de 1945. No campo, Levi foi trabalhador comum por muitos meses, mas em seguida foi levado a trabalhar no laboratório químico. Antes de entrar para um grupo de resistência italiano e ser capturado, ele tinha concluído a formação superior em química.
Levi foi capturado com 24 anos. Saiu do campo com 25, publicou o livro com 27, em 1947. Não deixa de ser incrível perceber a maturidade literária de seu relato. Diz: “Ele não foi escrito para fazer novas denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana”. Ele explica, no prefácio, que o livro foi escrito para satisfazer a “necessidade elementar” de tornar “os outros” parte do processo daquela experiência. E acrescenta, sombrio: “Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de imaginação”.
Atendendo àquela necessidade, Levi constrói um livro de memórias fragmentado, organizado de maneira a refletir, nas palavras dele, a dimensão finita de toda condição humana. Ou seja, até a infelicidade e a condição miserável em que os judeus no campo ocupavam eram finitas: limitadas pela certeza da morte. Foi isso que, aparentemente, o fez sobreviver no campo (junto com a experiência no laboratório): Levi, por outro lado, costuma atribuir sua sobrevivência à sorte.
No livro, estão presentes descrições sobre o dia-a-dia no campo, sobre a crueldade dos alemães e dos prisioneiros não-judeus em relação aos judeus, sobre a economia que se organizou etc. Levi discorre, por exemplo, sobre a verdadeira tortura que era dividir uma cama com um completo desconhecido, em que cada um ficava com a face próxima aos pés do outro, torcendo para que o companheiro não tivesse sido escalado para limpar as latrinas na noite anterior.
Primo Levi (Divulgação Companhia das Letras) |
Na famosa entrevista à Paris Review, Levi diz não sentir ódio (a entrevista é de 1985, dois anos antes de Levi morrer em circunstâncias obscuras). Mas ressalta: “[não sentir ódio] não é uma virtude; é um defeito”. E conclui: “Isso não quer dizer que eu esteja preparado para perdoar os alemães: não estou”.
Um ano depois, em 1986, Philip Roth entrevistou Levi, que com 67 anos, ainda demonstrava, para Roth, um vigor intelectual e físico muito grandes. Disse Levi, naquela ocasião (do livo Entre nós, de Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras):
“No campo de concentração, vivi do modo mais racional que me era possível, e escrevi É isto um homem? me esforçando para explicar aos outros, e a mim mesmo, os eventos em que eu estivera envolvido, mas sem nenhuma intenção literária clara. Meu modelo (ou, se você preferir, meu estilo) era o do “relatório semanal” que se faz nas fábricas: ele deve ser preciso, conciso e utilizar uma linguagem compreensível para todos da hierarquia industrial”.
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É isto um homem?
Primo Levi
Tradução: Luigi Del Re
Rocco (1988)
176 páginas
Esgotado
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No seu livro Diário da queda, Michel Laub faz com que É isto um homem? ocupe um lugar importante na narrativa. O avô do narrador de Diário da queda é também um sobrevivente de Auschwitz, daí o paralelo traçado entre as duas obras. Diz o narrador de Laub, na metade do livro:
“Falar hoje sobre a mãe de João e o meu avô é apelar para as referências que incorporei ao longo dos anos, os filmes, as fotografias, os documentos, a primeira vez que li É isto um homem? e tive a impressão de que não havia mais nada a dizer a respeito. Não sei quantos dos que escreveram a respeito leram o livro, mas duvido que em qualquer desses textos existia algo que não tenha sido mostrado por Primo Levi. Adorno escreveu que não há mais poesia depois de Auschwitz, Yehuda Amichai escreveu que não há mais teologia depois de Auschwitz, Hannah Arendt escreveu que Auschwitz revelou a existência de uma forma específica de mal, e há os livros de Bruno Bettelheim, Victor Klemperer, Viktor Frankl, Paul Celan, Aharon Appelfeld, Ruth Klüger, Anne Frank, Elie Wiesel, Imre Kertész, Art Spiegelman e tantos e tantos outros, mas de alguma forma eles não poderiam ir além do que Primo Levi diz sobre os companheiros de alojamento, os que estavam na mesma fila, os que dividiram a mesma caneca, os que fizeram a caminhada rumo à noite escura de 1945 onde mais de vinte mil pessoas sumiram sem deixar traço um dia antes da libertação do campo”.
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Capítulo inicial de É isto um homem?:
“Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalho no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.”
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Diário da queda
Michel Laub
Companhia das Letras (2011)
152 páginas
Preço sugerido: R$35,00
Excelente.
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