Pastoral Americana é um livro incrível e grande. Livros grandes têm maior facilidade de serem incríveis, e os últimos livros grandes que li (Anna Kariênina, por exemplo) foram sempre incríveis. Mas nenhum deles me deixou tão triste ao terminá-lo quanto Pastoral Americana. Há cenas, neste livro, que fazem chorar, que fazem pensar, que fazem você querer parar de ler, colocá-lo de lado, e gritar Meu deus, por que ele (Roth) está fazendo isso, por quê, por quê?
Desse tanto. Pastoral me deixou com insônia.
No livro, o narrador é o já estabelecido Nathan Zuckerman, alter-ego de Roth, que, diferentemente dos romances publicados no Brasil na edição de Zuckerman acorrentado, não é o personagem principal, mas principalmente o narrador. Na primeira das três partes do livro, Zuckermann narra em primeira pessoa sua própria experiência com Seymour Levov, o Sueco, esse sim o personagem principal do livro.
A convivência entre os dois se dá na escola secundária, quando Sueco era, aos olhos de todos, um atleta excepcional, invejado, lindo, musculoso, ídolo secreto de Zuckerman, que por sua vez, era amigo de Jerry apenas por este ser irmão do Sueco (Jerry, mais tarde, é o máximo). Muitos anos depois, Sueco e Zuckerman se encontram novamente, duas vezes (com um intervalo grande de tempo entre os dois encontros). É a partir do segundo que Zuckerman escreve o que escreve, que resulta nas duas partes finais do Pastoral Americana (que junto com A marca humana e Casei com um comunista formam a Trilogia Americana).
E é aí que você vai morrer de desgosto. A história do cara bonitão, que herda a fábrica de luvas do pai, que se casa e vai morar em uma região rural de New Jersey e tem uma filha que se revolta contra a Guerra do Vietnã é emocionante, sofrida, espetacular, trágica, inesquecível.
A narração de Zuckerman (na tradução de Rubens Figueiredo), que mistura a terceira pessoa, reflexões, pensamentos e suposições do Sueco, faz o livro de 500 páginas voar. Os temas, sempre presentes na obra de Roth, são igualmente irresistíveis: conflitos familiares levados ao extremo, dificuldade com as mulheres, judaísmo, e, claro, a América.
Óbvio que ninguém vai julgar um livro cujo título é “Pastoral Americana” por ele ser, digamos, americanista. O próprio Rubens Figueiredo, num encontro aqui em Curitiba, propôs uma reflexão que muitas vezes passa batida por nós, leitores brasileiros.
Mas antes, quero trazer um conceito dos estudos de recepção, o “narratário”. Diz Vincent Jouve: “Simetricamente, o receptor é ao mesmo tempo o leitor real, cujos traços psicológicos, sociológicos e culturais podem variar infinitamente, e uma figura abstrata postulada pelo narrador pelo simples fato de que todo texto dirige-se necessariamente a alguém. Mediante o que diz e do modo como diz, um texto supõe sempre um tipo de leitor - 'um narratário' - relativamente definido. (...) Pelos temas que aborda e pela linguagem que usa, cada texto desenha no vazio um leitor específico. Assim, o narratário, da mesma forma que o narrador, só existe dentro da narrativa: é apenas a soma dos signos que o constroem.”
O “narratário” desse livro, então, é o leitor americano de Zuckermann. Esse pensamento nos leva para a reflexão de Rubens Figueiredo:
“Ao ler com atenção os livros deles [Susan Sontag e Paul Auster], você não encontra críticas a respeito da distribuição desigual de poder no mundo. O postulado desses autores pode ser entendido como ‘os Estados Unidos dominam e é bom que seja assim’. [...] Estou traduzindo um livro que, a cada dez páginas, o autor fala em povo americano, democracia americana, sociedade americana, os Estados Unidos. É impressionante. E nós lemos e não percebemos isso. Não percebemos porque o nosso pressuposto é que isso é normal. Mas isso não é normal”.
Não é normal, mas acontece (e nesse caso, duas vezes, porque o narratário e o leitor real são americanos). Tem um poeminha do Leminski (tá na moda!) que ilustra perfeitamente:
"podem ficar com a realidade
esse baixo-astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano"
É isso! Parte do meu imaginário (parte significativa, infelizmente talvez) é moldada pela porra do cinema americano, e aí, quando um sujeito escreve um livro chamado Pastoral Americana eu sinto como se eu mesmo tivesse lembranças de verdade sobre o lugar e a identificação é inevitável. É incrível, mas é terrível ao mesmo tempo.
Diz Roth (Zuckermann):
“A ruptura do futuro americano previsto, que consistia simplesmente no desenrolar do consistente passado americano, no fato de cada geração se tornar mais esperta que a anterior - mais esperta por conhecer as inadequações e limitações das gerações precedentes -, [...] no desejo de ir até o limite na América apoiados nos nossos direitos, [...] de forma a levar a vida sem ter de pedir desculpas, como um igual entre iguais.
E então a perda [...] - iniciando o Sueco no desajuste de uma América completamente distinta, a filha e a década fazendo picadinho da sua forma particular de pensamento utópico, a América da peste se infiltrando no castelo do Sueco e, ali, infectando todo mundo. A filha que o transporta para fora da sonhada pastoral americana [...].”
A Pastoral é o sonho americano, the american dream, the american way of life, the wellfare state, the motherfucking Thanksgiving, com seu “peru gigante que alimenta 250 milhões de almas atormentadas” (“É a pastoral americana por excelência, e dura vinte e quatro horas”). O sonho é viver dentro da Pastoral, ser consumido pela Pastoral, está tudo ali, ela nos alimenta, nos fornece o football, nos enriquece, por que alguém em sã consciência deveria mudá-la?!
Mas o Sueco é transportado para fora da Pastoral.
“E por que não deveria estar onde eu queria? Por que não deveria estar com quem eu queria? Não é esse o espírito desse país? Quero ficar onde quero ficar e não quero ficar onde não quero ficar. É isso o que siginifca ser americano... não é?”
O que se passa, nas 500 páginas do livro, é o processo extremamente doloroso do Sueco sendo levado para longe da Pastoral. Não pense em dívidas, dúvidas simples, reflexões de escritores em cafés, filosofia rasteira, acontecimentos lineares, nada disso.
Pense num escritor. Agora, pense em uma obra-prima.
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Pastoral Americana
Philip Roth
Tradução Rubens Figueiredo
480 páginas
Preço sugerido: R$69,00; ebook até sabe deus quando R$9,90
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Se você gosta de Philip Roth e habita a internet literária do Brasil, conheça e frequente o Livros Abertos, um dos poucos blogs brasileiros por aí que eu ainda não vi ninguém xingar (alô, Camila!).
Philip Roth completou 80 anos no dia 19. Espero que ele esteja com saúde e viva bem e mais quantos anos quiser.
Devido à data especial, a Internet recebeu ou relembrou muito conteúdo sobre Roth. Bom. Estou buscando o link para o documentário Philip Roth: Unmasked, da série American Masters da PBS (uma dessas megacompanhias que deformaram os nossos imaginários), mas ainda não achei. Se alguém achar, passa ae! Quando encontrar, colocarei aqui e no tuíter.
Se você curte e-books, e é difícil achar esses livros físicos, corra que até o dia 21/03 (amanhã!) a Companhia das Letras tá com promoção para a Trilogia Americana. Pastoral me saiu pela bagatela de R$9,90.
Fica também uma entrevista bacana com o escritor, e tem até legendas em português. A entrevista foi cedida para o Estadão, repórter Lúcia Guimarães, em 2010:
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Mais um trecho do Pastoral porque é realmente bom:
"Persiste o fato de que entender direito as pessoas não é uma coisa própria da vida, nem um pouco. Viver é entender as pessoas errado, entendê-las errado, errado e errado, para depois, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas errado. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados. Talvez a melhor coisa fosse esquecer se estamos certos ou errados a respeito das pessoas e simplesmente ir vivendo do jeito que der. Mas se você é capaz de fazer isso... bem, boa sorte".
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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Liev Tolstói
Tradução: Rubens Figueiredo
Cosac Naify (2005)
816 páginas
Preço sugerido: R$109,00
Outro livro enorme em que basicamente todo mundo se fode no mau sentido.
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