terça-feira, 2 de outubro de 2012

Quero ser Reginaldo Pujol Filho, Reginaldo Pujol Filho

Desagravo à ficção sobre literatura

O relativo sucesso no Brasil de escritores como Enrique Vila-Matas levanta um ponto de vista curioso, com certeza, e conservador, talvez: o de que a literatura metaficcional seja, em última instância, um problema em si mesma. O problema: fazer ficção sobre escritores e sobre literatura levaria, fatalmente, (1) ao extermínio do romance, uma vez que a literatura acabaria e (2) à restrição cada vez maior da palavra escrita. Algo como o fim da história marxista. 

Ora, nada mais injusto: se faz literatura sobre escritores e sobre livros desde Cervantes. Como fala James Wood, a invenção do flaneur (com Flaubert) transforma todos nós (personagens ou leitores) em escritores. Dois autores realistas que, entre outros assuntos, fazem literatura sobre escritores e sobre livros: Philip Roth e J. M. Coetzee. Brasileiro: os primeiros livros de Reinaldo Moraes têm o protagonista escritor. Não dá para falar que estes exemplos são influenciados por alguma mania recente, ou que a literatura deles leve a um buraco sem fundo, ou que eles sejam tomados por uma vontade de pirotecnia estilística (na verdade, personagem escritor não tem nada de pirotécnico).

Ler uma história sobre adultério pode agradar um leitor mais do que uma história sobre congestionamento (ou, afinal, sobre um escritor). Se Machado ou Cortázar não tivessem escrito suas histórias da maneira como escreveram, elas seriam reduzidas a clichês sem sal (triângulo amoroso e tédio do congestionamento). Foi a sua realização que as fez, e não previamente seu conteúdo. 

O livro do gaúcho Reginaldo Pujol Filho (1980) pega toda esta discussão e a transforma num exercício literário autoirônico. E vai além: acrescenta o jogo muitas vezes hipócrita das influências, as assume (e debocha delas), e escreve seu segundo livro com um título bem claro: Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, em 2010).

A partir daí, os contos são todos denominados assim: “Quero ser Miguel de Cervantes”, “Quero ser Luigi Pirandello”, etc, e na maior parte do tempo refaz, satiriza, parodia e reproduz a literatura original de cada escritor. Pujol Filho tensiona os lugares-comuns da influência de escritores famosos até um ponto de ruptura (aqui o sucesso possível) para então criar uma voz própria (não é esse o desejo expresso no título?). É arriscado.

O problema é quando essa tensão não é suficiente: ao invés de alcançar a originalidade, o autor cai na armadilha da solução fácil ou óbvia. Por exemplo: ao levar ao pé da letra a vontade de se livrar da influência de Rubem Fonseca e por conseguinte se livrar do escritor, no conto “Quero ser Rubem Fonseca” o narrador tenta literalmente atropelar o autor de “Agosto”. Claro que a ironia (e o subtexto) nesta tentativa é muito clara: mas por um critério de autenticidade, este é o conto que não deveria estar no livro. Essa solução também não ocorre apenas neste texto.

Mas as coisas melhoram. Em “Quero ser Luis Fernando Verissimo” há uma mímica de um diálogo (sempre engraçado) do famoso analista de Bagé com alguém que, afinal de contas, quer ser Luis Fernando Verissimo. Em “Quero ser Gonçalo M. Tavares”, o narrador é o Senhor Pujol que quer entrar n’O Bairro do angolano e exulta quando encontra a “dízima semântica”. Em “Quero ser Italo Calvino” o narrador anota e discorre sobre seis ideias para “Quero ser Italo Calvino”. Com “Quero ser Machado de Assis”, Pujol leva o narrador machadiano ao limite do absurdo:

“Bem, continuemos a história. Contudo, como se narra com um personagem dormindo no sofá e outro ausente? Complica-se assim a minha atuação. Até esperaria para ver o que acontece, mas o que acontece é que há um leitor do outro lado, talvez já esperando em uma fila de banco, em uma sala de espera, em um aeroporto, não deve estar disposto a uma metaespera. Resta-me acordar a moça e provocar algum acontecimento digno de narração. Pois vou [...]”

Reginaldo Pujol Filho (Foto: Vini Marques)
O conto que deu origem ao livro, segundo o próprio autor em uma nota, é “Quero ser Amílcar Bettega Barbosa”, baseado num conto de Amílcar em que o seu o narrador encontra e entrevista Júlio Cortázar e, surpresa, percebe que o argentino esqueceu algumas folhas com manuscritos inéditos. A história é previsível, mas no meio dela há um exercício de investigação interessante. 

Não é regra, mas boa parte dos contos traz um personagem “real”, um escritor que de fato existe (por exemplo, Amílcar Bettega Barbosa), mas é ficcionalizado por Pujol. James Wood fala sobre isso no “Como funciona a ficção” (Cosac Naify, 2012, 2. ed):

“Talvez porque eu não saiba bem o que é um personagem, acho muito comoventes aqueles romances pós modernos [...] que nos apresentam personagens ao mesmo tempo reais e irreais. Em todos esses romances, o autor nos pede para refletir sobre o caráter fictício dos heróis e heroínas que aparecem no título. E, num excelente paradoxo, é justamente essa reflexão que desperta no leitor o desejo de tornar esses personagens ‘reais’, de dizer aos autores: ‘Eu sei que eles são apenas fictícios - você já me disse várias vezes. Mas eu só consigo conhecê-los tratando-os como reais’”

As narrativas “extra-literárias” também fazem parte do livro de Pujol: a escolha por envolver escritores e personagens de ficção (da literatura) nas histórias não é um valor intrínseco, como querem acreditar aqueles que defendem as ideias de que falei no início do texto. Além disso, o que há aqui é um provocador, realizando (e tentando realizar) mimeses descaradas de seus autores favoritos, sem medo de admiti-las, explorá-las, debochar delas: um caráter muito mais honesto do que tentar se esconder por trás das mesmas.

Nenhum escritor gosta de responder à pergunta “quem são suas influências”. O ponto é refletir até que altura ela é um lugar-comum e até que altura ela é assustadora.

Prova de que esse tipo de literatura não se encerra em si mesma é a seguinte: qualquer um pode ficar à vontade para escrever o seu próprio “Quero ser Reginaldo Pujol Filho”, fazendo ele mesmo uma mimese, de, por que não, Reginaldo Pujol Filho.

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Quero ser Reginaldo Pujol Filho
Reginaldo Pujol Filho
144 páginas
Preço sugerido: R$28,00

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