Quando a coragem faz a literatura
Na epígrafe escolhida para O filho eterno (2007), Cristovão Tezza (1952) usa a frase de Thomas Bernhard para fornecer uma chave à leitura de seu romance: “Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade”.
Ora, na obra de um autor até então notadamente confessional (mas não biográfico), a mistura de realidade e ficção é tão profusa que não há motivos para deixar claro o que é uma, e o que é outra. O recurso a Bernhard autoriza o leitor a pensar o que quiser nesse sentido. Em O filho eterno, toda a questão se inverte: com uma história claramente verossímil que ignora os limites entre ficção e realidade, a concentração do leitor passa em grande parte à brutalidade do relato.
Na epígrafe escolhida para O filho eterno (2007), Cristovão Tezza (1952) usa a frase de Thomas Bernhard para fornecer uma chave à leitura de seu romance: “Queremos dizer a verdade e, no entanto, não dizemos a verdade. Descrevemos algo buscando fidelidade à verdade e, no entanto, o descrito é outra coisa que não a verdade”.
Ora, na obra de um autor até então notadamente confessional (mas não biográfico), a mistura de realidade e ficção é tão profusa que não há motivos para deixar claro o que é uma, e o que é outra. O recurso a Bernhard autoriza o leitor a pensar o que quiser nesse sentido. Em O filho eterno, toda a questão se inverte: com uma história claramente verossímil que ignora os limites entre ficção e realidade, a concentração do leitor passa em grande parte à brutalidade do relato.
“Mas não é uma tarefa simples ou fácil”, escreveu o próprio Tezza, catarinense de nascimento e curitibano por formação.
Dono de uma prosa reconhecida desde Trapo (1988) e Juliano Pavollini (1989) (aliás, dois livros escritos e lançados após os acontecimentos descritos em O filho eterno), o autodefinido realista Cristovão Tezza dificilmente ignoraria o fato mais importante de sua vida em sua própria literatura: o filho com síndrome de Down. Se antes ele era apenas uma presença implícita na sua obra, torna-se em 2007 o personagem central do romance brasileiro mais premiado da primeira década do século XXI.
Pelo relato minuciosamente descritivo, percebe-se outra chave do romance: o filho eterno, o personagem principal, portanto, é na verdade o próprio pai, frágil, teimoso, “alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver”. Pai que, num recurso estilístico ousado, torna-se sempre e insistentemente “ele”, nunca “Cristovão”, nunca “eu”. Pai que com uma impetuosidade comovente é desconstruído e humilhado.
No romance, a descrição objetiva que se mistura à carga emocional vai aos poucos traçando duas histórias concêntricas que ainda carregam um subtexto ensaístico: a história do pai e da sua relação com seu filho; a história do escritor; a reflexão praticamente filosófica que o autor faz sobre a família.
Numa sucessão de capítulos curtos, as duas histórias se alternam, muitas vezes paralelas: o desconforto do pai em aceitar o filho, o desconforto do escritor em não ver seus livros publicados; a formação do pai que deve ser um pai especial, a formação de um ser humano que deve ser o escritor. Inevitavelmente, as histórias se encontram, e perceber o encontro é um dos grandes prazeres estéticos deste livro.
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“Qual era mesmo seu filho? — aquele ali, mostrou a enfermeira solícita, e ele sorriu diante da criança imóvel, buscando um ponto de convergência”. A pergunta desse trecho pode ser aplicada a cada página que descreve a relação entre pai e filho até o final do romance. Melhor, quem era mesmo seu filho? Melhor ainda, quem mesmo é o filho?
“Escrever: fingir que não está acontecendo nada, e escrever. Refugiado nesse silêncio, ele volta à literatura, à maneira de antigamente”. E apenas vinte anos depois ele demonstra o ressentimento que na época não era capaz de sentir: “E ele escreve de outras coisas, não de seu filho ou de sua vida — em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a síndrome de Down entrará no seu texto. Esse é um problema seu, ele se repete, não dos outros, e você terá de resolvê-lo sozinho”.
Cristovão Tezza - Créditos: Record |
O ensaio quase subcutâneo é potencializado para o personagem pela condição do filho: “ele jamais fará companhia ao meu mundo, o pai sabe, sentindo súbita a extensão do abismo, o mesmo de todo dia (e, talvez, o mesmo de todos os pais e de todos os filhos, o pai contemporiza)”. Se ter um filho, qualquer um, é um misto exagerado de felicidade e preocupação, a chegada do filho Down resolve esta questão para o personagem. O quê de luto pelo nascimento de um filho diferente do esperado é, no mínimo, assustador. Acrescente-se empatia, o leitor se assusta com a sua própria natureza: quem de nós teria sentimentos diferentes destes diante de uma situação assim, pergunta-se.
Escrever este livro demandou coragem. Roupá-lo de ficção, mais ainda. Um personagem de Philip Roth considera incrível a dificuldade das pessoas em conceber que uma história seja fruto da imaginação de alguém. No fundo, incrível mesmo é perceber a coragem de um homem ao imaginar (e então escrever) a mesma história que viveu.
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O filho eterno
Cristovão Tezza
Editora Record (2007)
224 páginas
Preço sugerido: R$37,90
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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:
Patrimônio
Philip Roth
Tradução: Jorio Dauster
Companhia das Letras (2012)
192 páginas
Preço sugerido: R$34,00
Um relato real do autor americano autor de "O complexo de Portnoy" e do personagem Nathan Zuckerman, que trata da relação inversa: ele é o filho que tem que aprender a lidar com uma condição do pai.
Massa, Guilherme.
ResponderExcluirAlém das mudanças que percebi, achei bem interessante o uso de negrito aqui e ali. Cool.
Abraço, meu chapa.
Valeu, Arthur!
ExcluirUm abraço.