“Então, vamo vê aqui mais um tico de Jack, um teco de pó, um tapa na brenfa e um totó no bico da breja. Tico, teco, tapa e totó. Adoro essa língua, última flor do felácio, tão puta e bela, que sonora se desdobra em tanto pau pra quanta obra.”
É assim que vai o Pornopopéia, do Reinaldo Moraes (Objetiva, 2011, ed. de bolso): tico, teco, tapa e totó. E exatamente com essa língua, última flor do felácio, tão bela, mas tão bela, que o livro meio que transcende definições possíveis para grupos temáticos da literatura. Chamar esse livro de beat seria reduzi-lo ao extremo e apagá-lo do seu verdadeiro lugar na literatura brasileira contemporânea: peça rara de uma literatura ousada, inventiva e original. Sem dúvida, um dos grandes romances publicados nos últimos anos.
Sem exagero: Pornopopéia (que manteve o acento, a pedido do autor, para segurar um único trocadilho que aparece lá nos finalmentes do livro) desvia dos padrões da escrita contemporânea no Brasil. Não é autoficção, não se derrama sobre as confissões e filosofias subjetivas do seu autor (quer dizer, não na medida do provável), não tem um autor que seja popstar no meio literário (no sentido de que Moraes não é um marqueteiro de si mesmo: quer dizer, os também excelentes Tanto faz e Abacaxi tinham sido publicados quase 20 anos antes, desde então, apenas contos e infantis). O parentesco mais próximo na contemporaneidade, além dos seus próprios livros dos anos 1980, é talvez Marcelo Mirisola, outro escritor excelente que não frequenta as rodas características e mesmo assim consegue relevância apenas com a qualidade da sua escrita.
Uma das grandes questões do livro, é que Zeca — o publicitário, cineasta e protagonista, que convive do começo ao fim do livro com uma pulsão fundamental em direção ao sexo e às drogas — é, no primeiro plano, um personagem completamente sem superego, machista, babaca, racista, elitista, e que mesmo assim cria uma empatia tremenda e definitiva.
O professor e crítico literário João Cezar de Castro Rocha (um dos mais respeitados críticos brasileiros no mundo) disse numa ocasião que o politicamente correto não pode dominar o discurso literário: no que ele está, afinal, coberto de razão. Segundo Castro Rocha, esse discurso não pode contaminar a literatura porque ela é um espaço privilegiado para o pensamento (e a linguagem, ora) de risco. Então, aqui vai um aviso: qualquer comentário sobre Pornopopéia que venha com teor politicamente correto tem que passar por esse filtro ficcional.
Reinaldo Moraes, paulistano, também é tradutor de Pynchon, Bukowski e outros (Foto: Companhia das Letras). |
Isso porque o livro é repleto de comportamentos estapafúrdios: desde mijar no chão do escritório, a roubar uma puta de rua, a entregar uma lula “recheada” para uma vizinha irritante, até mesmo a manter relações sexuais com uma menor de idade (sem o personagem saber com certeza, vai). Mesmo assim, qual é a maldade que existe no Zeca que não existe em algum grau em qualquer primo ou amigo filho da puta que todos nós temos? Nenhuma.
O humor do narrador é, sem dúvida, o grande trunfo do livro. É um romance engraçado do começo ao fim: e boa parte desse humor não vem apenas de piadas infames e criativas, mas principalmente pela inventividade narrativa do autor narrador, pelo próprio trabalho com a linguagem. Por exemplo:
“Destarte, e revogadas as disposições em contrário, achei por bem pegar num peito da entidade Bertoludzy por baixo do bustiê hiperdecotado que sustentava suas globulosas mamas. O silicone reagia bem às minhas carícias, deslocando-se com suavidade pra direita, pra esquerda, pra cima, pra baixo, feito água-viva aprisionada numa bolsa de borracha. [...] Lolla quis me beijar na boca, mas o elevador chegou antes ao andar, a porta se abriu e eu escapuli pro corredor deixando as beiçolas do traveco penduradas no ar saturado de incenso de descarrego.”
É a colocação incomum do clichê, o ponto de vista muito particular e pequenas percepções que desabrocham num uso muito original e divertido da língua. Isso é mais do que suficiente numa obra literária. Somando o enredo epopéico de conteúdo desbocado, taí uma obra prima contemporânea.
“O Keith Richards veio outro dia com esse papo de que cheirou as cinzas do pai dele misturadas com cocaína. Porra, amice, pensa um pouco, os restos mortais do teu pai escorrendo do teu nariz junto com a meleca da rinite cocaínica, e as pessoas apontando:
‘Cara, tem um ranho esquisito escorrendo do teu nariz.’
E você:
‘É papai.”
Encoxar a mãe no tanque perde — de longe.”
Aquela constatação de empatia com o personagem pareceu, numa entrevista que Reinaldo Moraes deu ao jornalista Luiz Rebinski, um problema para o autor. Mas, segundo o próprio, um problema que soou interessante ao escrever. E não é? Será que o leitor aceita o pacto ficcional que a obra propõe ou existe mesmo essa maldade potencial ou essa vontade de se liberar para as vontades mais urgentes em muitas pessoas?
Num artigo da revista Mapa #2 (jan-fev/2014), o escritor paquistanês Mohsin Hamid diz o seguinte:
“Talvez seja isso que encontremos nesse anseio generalizado por personagens de quem dê para gostarmos; um desejo de contato, através da ficção, com aquilo contra o qual nos blindamos no restante de nossas vidas, um desejo de que alguém nos lembre de que é possível abrirmos os olhos, vermos, reconhecermos nossa solidão - e, ao mesmo tempo, não estarmos inteiramente sós.”
O contato, com o Pornopopéia, é exatamente a puta e bela língua, última flor do felácio.
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Pornopopéia
Reinaldo Moraes
Objetiva (2011, ed. de bolso)
664 páginas
R$25,80
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Tradução: Paulo Henriques Britto
264 páginas
R$49,00
Que, inclusive, é citado no Pornopopéia.