quarta-feira, 5 de março de 2014

Pornopopéia, Reinaldo Moraes

“Então, vamo vê aqui mais um tico de Jack, um teco de pó, um tapa na brenfa e um totó no bico da breja. Tico, teco, tapa e totó. Adoro essa língua, última flor do felácio, tão puta e bela, que sonora se desdobra em tanto pau pra quanta obra.”
É assim que vai o Pornopopéia, do Reinaldo Moraes (Objetiva, 2011, ed. de bolso): tico, teco, tapa e totó. E exatamente com essa língua, última flor do felácio, tão bela, mas tão bela, que o livro meio que transcende definições possíveis para grupos temáticos da literatura. Chamar esse livro de beat seria reduzi-lo ao extremo e apagá-lo do seu verdadeiro lugar na literatura brasileira contemporânea: peça rara de uma literatura ousada, inventiva e original. Sem dúvida, um dos grandes romances publicados nos últimos anos.

Sem exagero: Pornopopéia (que manteve o acento, a pedido do autor, para segurar um único trocadilho que aparece lá nos finalmentes do livro) desvia dos padrões da escrita contemporânea no Brasil. Não é autoficção, não se derrama sobre as confissões e filosofias subjetivas do seu autor (quer dizer, não na medida do provável), não tem um autor que seja popstar no meio literário (no sentido de que Moraes não é um marqueteiro de si mesmo: quer dizer, os também excelentes Tanto faz e Abacaxi tinham sido publicados quase 20 anos antes, desde então, apenas contos e infantis). O parentesco mais próximo na contemporaneidade, além dos seus próprios livros dos anos 1980, é talvez Marcelo Mirisola, outro escritor excelente que não frequenta as rodas características e mesmo assim consegue relevância apenas com a qualidade da sua escrita.

Uma das grandes questões do livro, é que Zeca — o publicitário, cineasta e protagonista, que convive do começo ao fim do livro com uma pulsão fundamental em direção ao sexo e às drogas — é, no primeiro plano, um personagem completamente sem superego, machista, babaca, racista, elitista, e que mesmo assim cria uma empatia tremenda e definitiva.

O professor e crítico literário João Cezar de Castro Rocha (um dos mais respeitados críticos brasileiros no mundo) disse numa ocasião que o politicamente correto não pode dominar o discurso literário: no que ele está, afinal, coberto de razão. Segundo Castro Rocha, esse discurso não pode contaminar a literatura porque ela é um espaço privilegiado para o pensamento (e a linguagem, ora) de risco. Então, aqui vai um aviso: qualquer comentário sobre Pornopopéia que venha com teor politicamente correto tem que passar por esse filtro ficcional.

Reinaldo Moraes, paulistano,
também é tradutor de Pynchon,
Bukowski e outros
(Foto: Companhia das Letras).
Isso porque o livro é repleto de comportamentos estapafúrdios: desde mijar no chão do escritório, a roubar uma puta de rua, a entregar uma lula “recheada” para uma vizinha irritante, até mesmo a manter relações sexuais com uma menor de idade (sem o personagem saber com certeza, vai). Mesmo assim, qual é a maldade que existe no Zeca que não existe em algum grau em qualquer primo ou amigo filho da puta que todos nós temos? Nenhuma.

O humor do narrador é, sem dúvida, o grande trunfo do livro. É um romance engraçado do começo ao fim: e boa parte desse humor não vem apenas de piadas infames e criativas, mas principalmente pela inventividade narrativa do autor narrador, pelo próprio trabalho com a linguagem. Por exemplo:
“Destarte, e revogadas as disposições em contrário, achei por bem pegar num peito da entidade Bertoludzy por baixo do bustiê hiperdecotado que sustentava suas globulosas mamas. O silicone reagia bem às minhas carícias, deslocando-se com suavidade pra direita, pra esquerda, pra cima, pra baixo, feito água-viva aprisionada numa bolsa de borracha. [...] Lolla quis me beijar na boca, mas o elevador chegou antes ao andar, a porta se abriu e eu escapuli pro corredor deixando as beiçolas do traveco penduradas no ar saturado de incenso de descarrego.”
É a colocação incomum do clichê, o ponto de vista muito particular e pequenas percepções que desabrocham num uso muito original e divertido da língua. Isso é mais do que suficiente numa obra literária. Somando o enredo epopéico de conteúdo desbocado, taí uma obra prima contemporânea. 
“O Keith Richards veio outro dia com esse papo de que cheirou as cinzas do pai dele misturadas com cocaína. Porra, amice, pensa um pouco, os restos mortais do teu pai escorrendo do teu nariz junto com a meleca da rinite cocaínica, e as pessoas apontando:
‘Cara, tem um ranho esquisito escorrendo do teu nariz.’
E você:
‘É papai.”
Encoxar a mãe no tanque perde — de longe.”
Aquela constatação de empatia com o personagem pareceu, numa entrevista que Reinaldo Moraes deu ao jornalista Luiz Rebinski, um problema para o autor. Mas, segundo o próprio, um problema que soou interessante ao escrever. E não é? Será que o leitor aceita o pacto ficcional que a obra propõe ou existe mesmo essa maldade potencial ou essa vontade de se liberar para as vontades mais urgentes em muitas pessoas?

Num artigo da revista Mapa #2 (jan-fev/2014), o escritor paquistanês Mohsin Hamid diz o seguinte:
“Talvez seja isso que encontremos nesse anseio generalizado por personagens de quem dê para gostarmos; um desejo de contato, através da ficção, com aquilo contra o qual nos blindamos no restante de nossas vidas, um desejo de que alguém nos lembre de que é possível abrirmos os olhos, vermos, reconhecermos nossa solidão - e, ao mesmo tempo, não estarmos inteiramente sós.”
O contato, com o Pornopopéia, é exatamente a puta e bela língua, última flor do felácio. 

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Pornopopéia
Reinaldo Moraes
Objetiva (2011, ed. de bolso)
664 páginas
R$25,80

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

O complexo de Portnoy
Philip Roth
Tradução: Paulo Henriques Britto
264 páginas
R$49,00

Que, inclusive, é citado no Pornopopéia.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O processo, Franz Kafka

O réu que obedece

Quando um escritor consegue inscrever o seu nome, ou a sua obra, na própria linguagem, ou seja, transformar seu ponto de vista num adjetivo, é porque, sem dúvida, ele atingiu algo de grandioso. A palavra “kafkiano” faz lembrar, entre outras coisas, o ambiente opressivo, muitas vezes sem sentido aparente, e um problema sem solução: tudo isso está registrado, talvez como em nenhuma outra obra de Franz Kafka (1888-1924), em O processo (L&PM, 2010, tradução Marcelo Backes).

O processo foi revelado pelo célebre amigo e biógrafo de Kafka, Max Brod, que resgatou os manuscritos do livro ainda antes do falecimento do autor, em uma cidade próxima a Viena, por tuberculose, em 1924. Como Kafka não deixou instruções claras sobre a organização interna do livro, Brod orientou os capítulos: hoje, a organização original do “editor” é contestada, sendo que algumas edições europeias já trazem diferentes organizações baseadas na extensa herança crítica da obra do tcheco.

Exatamente por isso, o leitor não tem em mãos um livro completamente acabado. Por outro lado, O processo tem todos os elementos clássicos da literatura de Kafka, além das já citadas: o início arrebatador, a luta constante do personagem contra a sua própria situação perante as pessoas e o trabalho, as relações sociais de trabalho e o surrealismo próprio dos escritos do autor. Talvez a ausência mais importante, em relação ao trabalho mais antigo, seja a relação familiar: coisa que só aparece em um capítulo inacabado no apêndice das edições tradicionais (Max Brod optou por deixar alguns fragmentos de fora da seleção inicial).

O processo começa assim:
“Alguém devia ter caluniado Josef K., pois, sem que tivesse feito mal algum, ele foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua senhoria, que lhe trazia o café da manhã todos os dias bem cedo, por volta das oito horas, desta vez não aparecera. Isso jamais havia acontecido.”
A partir daí, como em A metamorfose, o personagem passa a ser praticamente consumido por sua condição: aqui, a condição de um réu de um processo importante, porém muito semelhante a diversos outros processos, que parecem um fim em si mesmo, ou seja, não há objeto, mérito, atos. Há apenas juízes, advogados, réus, o tribunal. O estranhamento ocorre quando o leitor descobre a chave que o autor deu ao personagem: não há um questionamento sobre “o quê” é o processo, ou qual seu objeto, mas sim em como resolvê-lo. Não tão passivamente, K. aceita essa determinação judicial, e passa o livro na tentativa de se defender perante o tribunal. Portanto, resumir a sinopse do livro em “a história do indivíduo que é processado sem saber por que” seria uma injustiça.

Melhor seria dizer que O processo descreve um ano na vida de Joseph K., que luta contra uma imposição judicial e contra o seu próprio ímpeto. Porém, é claro, não é só isso. Kafka coloca vários elementos na narrativa que causam uma profunda desconfiança no leitor, e a pergunta que passa pela cabeça durante a leitura é a seguinte: por que esse indivíduo não quer saber o que fez? Acontece que, como já dito, não é essa a questão chave do livro. A questão chave estaria mais próxima da resposta à pergunta: “o que ele vai ter que fazer para se livrar do processo, e em última instância, não cometer uma loucura?”.

Por exemplo: K. procura um advogado, colega de escola de um tio, e quando ambos (K. e o tio) vão visitá-lo, o advogado já está padecendo de um grave problema no coração, e também por ser oito da noite, já está na cama. E é aí que ele recebe as visitas de K. pelo resto do livro: no seu próprio quarto, de pijamas, deitado na cama.

Isso se torna problemático quando o leitor descobre uma das chaves para a leitura de O processo: quanto maior o esforço em fazer algo acontecer, mais prejudicial e agressivo o processo se torna. Não há saída possível, parece querer dizer Kafka. Não adianta tentar.

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Kafka, em um de seus diários, se referiu a uma de suas mulheres como “meu tribunal”. A relação de Josef K. com as mulheres e com a sexualidade é algo que renderia uma resenha além desta. Porém, podem-se citar algumas passagens que contribuem na interpretação desse personagem esquisito.

Quando percebe que a senhoria limpou todo o aposento dele, que estava bagunçado, em apenas uma tarde, K. pensa “mãos femininas conseguem fazer muita coisa em silêncio”. Quando vai visitar o local do tribunal e descobre que nele mora uma família, uma mulher o recebe e logo após dizer que é casada, elogia os olhos dele, e após uma conversa, diz o narrador:
“Ela acariciou a mão de K., levantou-se de um salto e correu para a janela. Involuntariamente, K. ainda tentou pegar a mão dela, mas agarrou apenas o vazio. A mulher de fato o seduzia, e ele não encontrava, apesar de refletir muito a respeito, nenhum motivo justificável para não ceder à sedução.”
Em outra ocasião, ao encontrar funcionários do tribunal sendo castigados dentro do próprio banco onde trabalha, K. vê o carrasco “metido numa espécie de roupa de couro escura, que deixava nu o pescoço até bem embaixo, no peito, e os braços por inteiro”. Qualquer semelhança com o sadomasoquismo moderno é pura coincidência.

O que essas cenas mostram é um sedutor involuntário: e aqui se pode construir um paralelo bastante visível entre a relação de K. com o processo e com a questão sexual. Há sempre uma estranheza, uma brutalidade sutil, um não entendimento, uma perversidade (erótica e não) mal explicada.

O escritor italiano Primo Levi disse em uma entrevista que concordava com a afirmação de Heinrich Böll sobre o caráter “law-abiding” (obediente à Lei) dos germânicos. Isso teria sido, por exemplo, um dos fatores que permitiu o Holocausto. Porém, o que importa aqui é que Josef K. (embora não haja evidências de que ele era alemão, ou tcheco, mas Kafka escrevia em alemão) parece ter o mesmo problema: ele obedece. Mesmo com uma personalidade imprevisível no início do livro, em que lapsos de raiva são frequentes, mesmo sem saber para onde seu processo está indo, ou porque ele está sob julgamento, ou que “ter um processo desses já significa tê-lo perdido”, K. obedece. É isso.

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O processo
Franz Kafka
Tradução: Marcelo Backes
L&PM (2006)
304 páginas
R$19,90

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Lição de Kafka
Modesto Carone
Companhia das Letras (2009)
144 páginas
R$31,50

Boa referência, inclusive para esta resenha.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Livro dos Novos

O que é motivo para uma antologia? Na verdade, qualquer um: sexo, faixa etária, assunto, estilo, pertencer ao grupo certo de amigos, ter sorte, ter editor ou agente influente, ou, como eu acredito que seja o caso, a geografia (embora o motivo seja, obviamente, também, a faixa etária). O Livro dos Novos (Travessa dos Editores, 2013, 136 p.), organizado pela escritora Adriana Sydor e lançado recentemente em Curitiba, reúne 16 autores de até 30 anos que nasceram ou vivem em Curitiba e Região. São apostas – poucos já tiveram textos publicados em outras ocasiões – referendadas por uma editora tradicional da cidade.

Embora eu continue acreditando que a geografia é o principal atributo da coletânea (e o título me desminta), o que mais se nota pela ausência, nos contos, é a própria geografia. Não que isso seja um problema em si, mas poucos dos contos da antologia delimitam uma geografia precisa. Não a mistificação do Brasil, nem de Curitiba, não. Por exemplo: “No ringue de Hemingway”, um dos melhores contos do livro, de Felipe Franco Munhoz, o início já situa tudo muito bem: “San Francisco de Paula, Cuba”. Conseguir estabelecer uma geografia para a literatura (que precisa ir além do “campo” x “cidade”), acredito, é um bom desafio que merece ser encarado com mais vigor.

Há opções estéticas diversas entre os contos, mas nem tantas: a maioria das histórias se contenta em narrar um fato passado e pronto. Mas várias, é claro, vão além: “Guarda-roupas”, de Arthur Tertuliano, opta por criar um imaginário vasto para, com elegância e desenvoltura, contar uma história de um transgênero. A carta de “Noite em Antônio Maria”, de Daniel Zanella, é comovente. “Acabou”, de Guylherme Custódio, consegue cumprir bem uma das lições de Ricardo Piglia nas Teses sobre o conto: contar as duas histórias numa só.

Outro fio que une, de maneira positiva, a maioria dos textos da antologia é o controle do narrador: a escolha da primeira pessoa, presente em 11 dos 16 textos, é a escolha mais óbvia, mais segura, e geralmente a mais acertada. Criar um foco narrativo na terceira pessoa é mais arriscado: assim como é arriscado usar muitos verbos no pretérito mais que perfeito (“acabara”). A não ser que o objetivo seja claramente escrever um texto situado em outro tempo, que não o séc. XXI, como acontece em “Híbrida Companhia”, de Walter Bach, o uso do pretérito mais que perfeito é, quase sempre, desnecessário, chato e ingênuo.

A variedade temática dos contos, por outro lado, é um fator positivo. “Hominho”, de Yuri Al’Hanati, é narrado em primeira pessoa por um fazendeiro que vê seu cavalo preferido esfaqueado por um parente deficiente mental; “Como fumaça”, de Rodrigo Araújo, é um libelo quase modernista em defesa do tabaco; “Da falta de existir”, de Melissa R. Pitta, usa a metalinguagem numa tentativa de abarcar a insignifância da literatura; “Era”, de Marco Antonio Santos, tem um dos melhores e mais simples inícios do livro: “Entre 1997 e 2002 fui um cantor famoso”; “Entre Guaco & Azeitonas”, de Celso Alves, cria um ambiente faroeste para uma história envolvente.

Senti falta de maior experimentação e liberdade narrativa, mas os textos são, quase todos, muito bem escritos. A iniciativa de uma coletânea dessa espécie é bastante elogiável: num mercado editorial burocrático, conseguir publicar pode ser, para muitos, uma conquista muito grande. Espero e acredito que não tenha sido, para ninguém, um experimento constrangedor.

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Livro dos Novos
Adriana Sydor (org.)
Travessa dos Editores (2013)
136 p.
R$30,00.

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Se você gostou desse, provavelmente também vai gostar de:

Revista Granta, V. 9 - Os melhores jovens autores brasileiros
Vários autores
Alfaguara (2012)
288 p.
R$34,90